Universidade medieval
As universidades medievais foram fundadas por volta de 1150, no contexto do Renascimento do Século XII. Essas instituições são o ponto de partida para o modelo de universidade que temos até hoje. Trata-se não apenas de instituições de ensino: a universidade medieval era também o local de pesquisa e produção do saber, era também o foco de vigorosos debates e muitas polêmicas - o que fica evidente pelas crises em que estas instituições estiveram envolvidas e pelas muitas intervenções que sofreram do poder real e eclesiástico.
As primeiras universidades da Europa foram fundadas na Itália e na França, em que vieram das escolas catedrais, ou seja, fundadas pela Igreja Católica. A parte central do ensino envolvia o estudo das artes preparatórias, ou artes liberais; o trivium (trívio): gramática, retórica e lógica; e do quadrivium (quadrívio) : aritmética, geometria, música e astronomia. Depois disso, o aluno podia realizar os estudos mais específicos, que eram originalmente as 4 disciplinas: direito, medicina, teologia e filosofia[1]. As mulheres não eram voltadas para essa educação, com exceção de algumas que muito influenciaram sua época, tal como Cristina de Pisano e Hildegarda de Bingen. Ao que parece, muitos estudantes universitários medievais proviam de famílias de poucas posses e de classe baixa. Haviam também frades entre os estudantes, homens que desejavam simplesmente ampliar seus conhecimentos e promover virtudes intelectuais, ou contavam com o patrocínio de um superior eclesiástico. [2]
Origens, Cidade e Toga e Vida Acadêmica
No século IX, Carlos Magno conseguira reunir grande parte da Europa sob seus domínios. Para unificar e fortalecer o seu império, ele decidiu elaborar uma reforma na educação. Foi chamado o monge inglês Alcuíno que elaborou um projeto de desenvolvimento escolar, em Aix-la-Chapelle, que buscou reviver o saber clássico estabelecendo os programas de estudo a partir das sete artes antigas: o trivium, ou ensino literário (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium, ou ensino científico (aritmética, geometria, astronomia e música). A partir do ano 787, foram emanados os decretos que recomendava, junto às cortes. Essas medidas teriam seus efeitos mais significativos séculos mais tarde. O ensino da dialética (ou lógica) foi fazendo renascer o interesse pela indagação especulativa; dessa semente surgiria a filosofia cristã da Escolástica.
Nos séculos XI e XII, algumas das escolas que haviam sido estruturadas a partir das ordens de Carlos Magno, que se destacaram por seu alto nível de ensino, ganham a forma de Universidades. Isso ocorre especialmente entre as escolas catedrais. Depois começaram a surgir instituições, fundadas por autoridades, que já nasciam estruturadas como uma instituição de ensino superior. As universidades que evoluíram de escolas catedrais, foram chamadas por ex consuetudine; Já aquelas fundadas por reis ou papas eram as universidades ex privilegio.
Entre 1200 e 1400 foram fundadas, na Europa, 52 universidades, e 29 delas foram erguidas pelo papado. E, de fato a Igreja Católica era a conservadora e transmissora do alto conhecimento durante todo este período. A transformação cultural gerada pelas universidades no século XIII, foi expressada pela frase de Charles H. Haskins: Em 1100, a escola seguia o mestre; em 1200, o mestre seguia a escola.[3]
Conflitos entre os burgueses e os universitários, e a proteção dos papas: [4]
Um olhar de relance sobre a história da universidade medieval revela que não eram incomuns os conflitos entre a universidade e o povo ou o governo local. Como explica Joseph H. Lynch, comentarista moderno, os habitantes das cidades amavam o dinheiro, mas odiavam os estudantes. Ouvia-se muitas vezes os estudantes e os professores queixarem-se de que eram tratados com abuso pelos cidadãos locais, com dureza pela polícia e ludibriados no preço dos aluguéis, alimentos e livros.[5] No meio dessa atmosfera tensa, a Igreja Católica rodeou os estudantes de uma proteção especial, o chamado benefício do clero. Os clérigos gozavam na Europa medieval de um estatuto especial: maltratá-los era um crime extraordinariamente grave; tinham o direito de que as suas causas fossem julgadas por um tribunal eclesiástico, e não pelo civil. Os estudantes universitários, como atuais ou potenciais candidatos ao estado clerical, passaram também a gozar desses privilégios. Os governantes civis também lhes estenderam muitas vezes uma proteção similar: em 1200, Filipe Augusto da França concedeu e confirmou esses privilégios aos estudantes da Universidade de Paris, permitindo-lhes ter as suas causas julgadas por um tribunal especial, que certamente lhes seria mais simpático do que os tribunais da cidade.[6]
Os papas intervieram em defesa da universidade em numerosas ocasiões. Em 1220, o papa Honório III (1216-1227) pôs-se do lado dos professores de Bolonha, que protestavam contra as violações das suas liberdades. Quando o chanceler de Paris insistiu em que se jurasse lealdade à sua pessoa, o papa Inocêncio III (1198-1216) interveio. Em 1231, perante a intromissão das autoridades diocesanas locais na autonomia institucional da universidade, o papa Gregório IX lançou a bula Parens scientiarum, em favor dos mestres de Paris. Nesse documento, concedeu efetivamente à Universidade de Paris o direito à autonomia de governo, com a qual podia elaborar as suas próprias regras a respeito dos cursos e pesquisas e submeteu-a diretamente à jurisdição pontifícia, emancipando-a da interferência diocesana. Foi ainda nesse mesmo documento que o papa procurou zelar pela justiça e concórdia no ambiente universitário, mediante a concessão de um privilégio conhecido como cessatio - o direito de os alunos entrarem em greve, caso fossem tratados de modo abusivo.[7]
Vida Acadêmica:
A distinção que hoje fazemos entre os estudos de graduação e os de pós-graduação seguia mais ou menos os padrões de hoje. E, também como hoje, algumas universidades eram especialmente conhecidas pelo seu alto nível em determinadas áreas: assim, Bolonha tornou-se famosa pelo seu curso de direito e Paris pelos de teologia e de artes.
O graduando ou artista (isto é, o estudante das artes liberais), assistia a conferências, participava dos debates que eventualmente se organizavam nas aulas e assistia aos que eram entabulados por outros. As preleções versavam geralmente sobre textos importantes, muitas vezes dos clássicos da Antiguidade. Além dos comentários sobre esses textos, os professores passaram a incluir gradualmente uma série de questões que deviam ser resolvidas pelo recurso ao pensamento lógico. Com o tempo, a análise dessas questões substituiu basicamente os comentários de textos. Esta foi a origem do método escolástico de argumentação por meio da discussão de argumentos contrapostos, tal como a encontramos na Summa theologiae de Santo Tomás de Aquino.
Uma vez que o examinando dirimia satisfatoriamente uma questão perante os examinadores, era-lhe conferido o diploma de bacharel em artes. O processo levava normalmente quatro ou cinco anos. Chegado a este ponto, o estudante podia simplesmente dar por terminada a sua formação, como faz hoje em dia a maior parte dos bacharéis, e sair em busca de um trabalho remunerado (até mesmo como professor nalguma das escolas menores da Europa), ou decidir continuar os seus estudos e obter um diploma de pós-graduação, o que lhe conferiria o título de mestre e o direito de lecionar em uma universidade.[8] É difícil determinar o intervalo de tempo exato que costumava transcorrer entre a obtenção da licenciatura e do mestrado, mas uma estimativa é que oscilava entre 6 meses e 3 anos.
Algumas dessas universidades recebiam da Igreja o título de Studium Generale, que indicava que este era um instituto de excelência internacional; estes eram considerados os locais de ensino mais prestigiados do continente. Acadêmicos de um Studium Generale eram encorajados dar cursos em outros institutos por toda a Europa, bem como a partilhar documentos. Isso iniciou a cultura de intercâmbio presente ainda hoje nas universidades Europeias.
Contrariando a impressão geral de que as pesquisas estavam impregnadas de pressupostos teológicos, os estudiosos medievais tinham grande respeito pela autonomia da filosofia natural, um ramo separado da Teologia.[9] Isso se evidencia por exemplo, quando um dominicano pediu a Alberto Magno, um dos maiores cientistas e doutores da Igreja da Idade Média e mestre de São Tomás, que escrevesse um livro de física que os pudesse ajudar a entender as obras de física de Aristóteles. Santo Alberto rejeitou antecipadamente a ideia de que a teologia deveria ter se entremeado com a física, esclarecendo que as ideias teológicas pertenciam aos tratados de teologia, e não aos de física.[10]
O estudo da lógica na Baixa Idade Média fornece-nos mais um conteúdo do compromisso com o pensamento racional da época. Segundo Edward Grant, "através dos sólidos estudos da lógica, os estudantes eram instruídos acerca da sutileza da linguagem e das armadilhas da argumentação."
Uma das mais importantes contribuições medievais para a ciência moderna foi a liberdade de pesquisa no mundo universitário, onde os acadêmicos podiam debater e discutir as proposições apoiadas na utilidade da razão humana.[11] A Vida intelectual medieval, grosseiramente afirmada como anti-científica e irracional pelos modernos e pelo senso comum da população atualmente, prestou contribuições indispensáveis à nossa civilização. <Os Mestres da Idade Média criaram uma ampla tradição intelectual, sem a qual o subsequente progresso na filosofia natural teria sido inconcebível - escreve David Lindberg, historiador estadunidense da ciência.> [12]
Todavia, alguns autores afirmam que a criação do diploma teria sido um regresso na educação quando se trata de cultivar o saber e promover virtudes, pois o estudo acaba virando, muitas vezes, a busca de um diploma e de dinheiro apenas. Isso pode ser demonstrado inicialmente, com os goliardos medievais, grupo de taberneiros que faziam chacota com várias coisas.
Ver também
- Universidade
- Universidades mais antigas do mundo
- Idade Média
- Ciência e tecnologia medieval
- Renascimento carolíngio
- Artes Liberais
Leituras recomendadas
- Oliveira, Terezinha (2007). «Origem e memória das universidades medievais: a preservação de uma instituição educacional» (HTML). Varia história. 26 (37). Belo Horizonte: SciELO. pp. 113–129. ISSN 0104-8775. doi:10.1590/S0104-87752007000100007. Consultado em 31 de março de 2009
- Oliveira, Terezinha (2006). «A universidade medieval: uma memória» (HTML). Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval. 6. ISSN 1676-5818. Consultado em 27 de março de 2009
- Hélgio, Trindade (1999). «Universidade em perspectiva: sociedade, conhecimento e poder» (PDF). Revista Brasileira de Educação (10). Editora Autores Associados. pp. 05–15. ISSN 1413-2478. Consultado em 31 de março de 2009
Referências
- ↑ Johnson, Patrick (1 de dezembro de 2015). «Book Reviews: Thomas E. Woods: How the Catholic Church Built Western Civilization». SALESIAN JOURNAL OF HUMANITIES & SOCIAL SCIENCES (2): 148–149. ISSN 0976-1861. doi:10.51818/sjhss.06.2015.148-149. Consultado em 5 de dezembro de 2024
- ↑ Boyce, Gray C.; Leff, Gordon (outubro de 1968). «Paris and Oxford Universities in the Thirteenth and Fourteenth Centuries: An Institutional and Intellectual History». The American Historical Review (1). 139 páginas. ISSN 0002-8762. doi:10.2307/1857676. Consultado em 5 de dezembro de 2024
- ↑ HASKINS, Charles H., Rennaisance of the twelfth Century, 1927, p. 358
- ↑ Johnson, Patrick (1 de dezembro de 2015). «Book Reviews: Thomas E. Woods: How the Catholic Church Built Western Civilization». SALESIAN JOURNAL OF HUMANITIES & SOCIAL SCIENCES (2): 148–149. ISSN 0976-1861. doi:10.51818/sjhss.06.2015.148-149. Consultado em 5 de dezembro de 2024
- ↑ Lynch, Joseph (16 de dezembro de 2013). «The Medieval Church». doi:10.4324/9781315836324. Consultado em 5 de dezembro de 2024
- ↑ Halporn, James W.; Daly, Lowrie J. (1962). «The Medieval University, 1200-1400». The Classical World (6). 181 páginas. ISSN 0009-8418. doi:10.2307/4344826. Consultado em 5 de dezembro de 2024
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- ↑ Grant, Edward (30 de julho de 2001). God and Reason in the Middle Ages. [S.l.]: Cambridge University Press
- ↑ Johnson, Patrick (1 de dezembro de 2015). «Book Reviews: Thomas E. Woods: How the Catholic Church Built Western Civilization, pág. 54». SALESIAN JOURNAL OF HUMANITIES & SOCIAL SCIENCES (2): 148–149. ISSN 0976-1861. doi:10.51818/sjhss.06.2015.148-149. Consultado em 5 de dezembro de 2024
- ↑ Johnson, Patrick (1 de dezembro de 2015). «Book Reviews: Thomas E. Woods: How the Catholic Church Built Western Civilization, pág. 61». SALESIAN JOURNAL OF HUMANITIES & SOCIAL SCIENCES (2): 148–149. ISSN 0976-1861. doi:10.51818/sjhss.06.2015.148-149. Consultado em 6 de dezembro de 2024
- ↑ Lindberg, David C. (1992). The Beginnings of Western Science. [S.l.]: University of Chicago Press