Amor cortês
Amor cortês foi um conceito europeu medieval de atitudes, mitos e etiqueta para enaltecer o amor, e que gerou vários gêneros de literatura medieval, incluindo o romance. Ele surgiu nas cortes ducais e principescas das regiões onde hoje se situa a França meridional, em fins do século XI, e que se propagou nas várias que enalteciam o "Ideal cavaleiresco". Na sua essência, o amor cortês era uma experiência contraditória entre o desejo erótico e a realização espiritual, "um amor ao mesmo tempo ilícito e moralmente elevado, passional e autodisciplinado, humilhante e exaltante, humano e transcendente".[1]
A expressão "amor cortês" foi popularizada por Gaston Paris em 1883, e desde então tem caído sob uma ampla variedade de definições e usos, sendo mesmo descartado como uma ficção romântica do século XIX. A sua interpretação, origens e influência continuam a ser assunto de discussão.
Origens do "amor cortês"
A expressão amour courtois ("amor cortês"), foi dada em sua definição original por Gaston Paris em um artigo escrito em 1883, "Études sur les romans de la Table Ronde: Lancelot du Lac, II: Le conte de la charrette", um tratado onde ele analisa Lancelote, o Cavaleiro da Carreta (1177) de Chrétien de Troyes. O dito amour courtois de Paris era uma disciplina nobre e idealizadora. O amante (idealizador) aceita a independência de sua senhora e tenta fazer de si próprio merecedor dela, agindo de forma corajosa e honrada (nobre) e fazendo quaisquer feitos que ela deseje. A satisfação sexual, diz Paris, pode não ser um objetivo ou mesmo o resultado final, mas o amor não era inteiramente platônico, visto que era baseado em atração sexual.
A expressão e a definição de Paris foram logo amplamente aceitas e adotadas. Em 1936, C.S. Lewis escreveu o influente The Allegory of Love, solidificando ainda mais o amor cortês como "amor de um tipo altamente especializado, cujas características podem ser enumeradas como Humildade, Cortesia, Adultério e a Religião do Amor".[2]
Posteriormente, historiadores tais como D.W. Robertson[3] na década de 1960 e John C. Moore[4] e E. Talbot Donaldson[5] nos anos 1970, foram críticos da expressão, considerando-a uma invenção moderna. Donaldson a chamava de "O Mito do Amor Cortês", porque não tinha suporte nos textos medievais. Todavia, mesmo que a expressão "amor cortês" apareça em apenas um dos poemas provençais remanescentes (como cortez amors numa poesia lírica de fins do século XII escrita por Peire d'Alvernhe), relaciona-se muito de perto com a expressão fin'amor ("gentil amor") a qual aparece frequentemente em provençal e francês, bem como em alemão, traduzida como hohe Minne. Em acréscimo, outros termos e frases associados com "cortesia" e "amor" são comuns através da Idade Média. Mesmo que Paris tenha utilizado uma expressão com pequena sustentação na literatura contemporânea, não era um neologismo e descrevia de forma prática uma concepção particular de amor e enfocava a cortesia, que era a sua essência.[6]
Prática no mundo real
Um ponto de contínua controvérsia é se o amor cortês era puramente literário ou se era realmente praticado na vida real. Não existem registros históricos que ofereçam evidência de sua presença na realidade. O historiador John Benton não encontrou nenhuma evidência documental em textos legais, sentenças judiciais, crônicas ou outros documentos históricos.[7] Todavia, a existência do gênero de não-ficção dos "livros corteses" é talvez uma evidência de sua prática. Por exemplo, de acordo com o Livro das Três Virtudes (cerca de 1405) de Christine de Pizan, o qual expressa desaprovação com o amor cortês, a convenção estava sendo usada para justificar e encobrir relacionamentos ilícitos. O amor cortês provavelmente encontrou expressão no mundo real em costumes tais como a coroação das "Rainhas do Amor e Beleza" em torneios. Philip le Bon, em sua Feast of the Pheasant em 1454, contava com parábolas extraídas do amor cortês para incitar seus nobres a jurar que participariam de futuras cruzadas, enquanto que já bem dentro do século XV numerosas convenções políticas e sociais reais eram grandemente baseadas nas fórmulas ditadas pelas "regras" do amor cortês.
Corte de amor
Um ponto de controvérsia é a existência de "cortes de amor", mencionadas inicialmente por André Capelão. Supostamente, eram cortes criadas à maneira de tribunais, constituídas por mulheres (em número indo de 10 a 70) às quais eram apresentados casos de amor para serem julgados com base nas regras do amor. Os historiadores do século XIX tomaram a existência destas cortes como fato, mas, estudiosos posteriores como John F. Benton notaram que "nenhuma das abundantes cartas, crônicas, canções e dedicatórias pias" sugerem que elas tenham existido fora da literatura poética.[7] De acordo com Diane Bornstein, um modo de reconciliar as diferenças entre as referências às cortes de amor na literatura e a falta de documentação na vida real, é que elas eram um tipo de salão literário ou de reuniões sociais, onde as pessoas liam poemas, debatiam questões de amor e flertavam com jogos de palavras.
Principais pontos
A teoria do amor cortês pressupõe uma concepção platónica e mística do amor, que pode ser resumida nos pontos abaixo:
- Total submissão do enamorado à sua dama (por uma transposição do amor às relações sociais sob o feudalismo, o enamorado rende vassalagem à sua senhora).
- A amada é sempre distante, admirável e um compêndio de perfeições físicas e morais.
- O estado amoroso, por transposição ao amor dos sentimentos e imaginário religioso, é uma espécie de estado de graça que enobrece a quem o pratica.
- Os enamorados são sempre de condição aristocrática.
- O enamorado pode chegar a comunicar-se com a sua inatingível senhora, após uma progressão de estados que vão desde o suplicante ("fenhedor", em occitano) ao amante ("drut").
- Trata-se, frequentemente, de um amor adúltero. Por isso, o poeta oculta o objeto de seu amor substituindo o nome da amada por uma palavra-chave ("senhal") ou pseudónimo poético.
Ver também
Notas
- ↑ NEWMAN, Francis X., ed. (1968). The Meaning of Courtly Love, vii.
- ↑ LEWIS, C.S. (1936). The Allegory of Love.
- ↑ ROBERTSON, D.W. (1962). "Some Medieval Doctrines of Love", in A Preface to Chaucer.
- ↑ MOORE, John C. inicia assim sua revisão do histórico e das armadilhas da expressão: "a origem da expressão 'amor cortês' é geralmente colocada em um dos dois séculos, o XIX ou o XX" (MOORE, John C., "Courtly Love": A Problem of Terminology". Journal of the History of Ideas, 40.4 (Outubro de 1979, pp. 621-632) p. 621.
- ↑ DONALDSON, E. Talbot (1970). "The Myth of Courtly Love", in Speaking of Chaucer.
- ↑ BOASE, Roger. (1986). "Courtly Love," in Dictionary of the Middle Ages, Volume 3, pp. 667-668
- ↑ a b BENTON, John F. "The Evidence for Andreas Capellanus Re-examined Again", in Studies in Philology, 59 (1962); e "The Court of Champagne as a Literary Center", in Speculum, 36(1961)
Leituras adicionais
Em inglês
- DUBY, Georges. The Knight, the Lady, and the Priest: the Making of Modern Marriage in Medieval France. Traduzido por Barbara Bray. Nova York: Pantheon Books, 1983. (ISBN 0-226-16768-2)
- GAUNT, Simon. "Marginal Men, Marcabru, and Orthodoxy: The Early Troubadours and Adultery." Medium Aevum 59 (1990): 55-71.
- LEWIS, C. S. The Allegory of Love: A Study in Medieval Tradition. Oxford, Clarendon Press, 1936. (ISBN 0-19-281220-3)
- MENOCAL, Maria Rosa. The Arabic Role in Medieval Literary History. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2003. (ISBN 0-8122-1324-6)
- NEWMAN, Francis X. The Meaning of Courtly Love. Albany: State University of New York Press, 1968. (ISBN 0-87395-038-0)
- SCHULTZ, James A. Courtly Love, the Love of Courtliness, and the History of Sexuality'. Chicago: The University of Chicago Press, 2006. (ISBN 0-226-74089-7)
- TUCHMAN, Barbara Wertheim. A Distant Mirror: the Calamitous 14th Century. Nova York: Knopf, 1978. ISBN 0394400267.
- WARD, Matt C. The Ideas of Courtly Love. Oxford, University Press, 1923 (ISBN 0-74533-762-0)
Em português
- BARROS, José D'Assunção. A Religião na Arena Social dos trovadores ibéricos. Revista Portuguesa de Humanidades (Revista da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa - Portugal). Ano 2005, vol.9, Fases 1 – 2, p. 187-204. dezembro, 2005
- BOCCALATO, Marisa Mikahil. A invenção do erotismo: Tristão e Isolda e as trovas corteses. São Paulo: EDUC: Experimento, 1996. ISBN 85-283-0095-1 (EDUC)
- CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês (introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant; tradução de Ivone Benedetti). São Paulo: Martins Fontes, 2000. ISBN 8533612656
- COUTINHO, Priscila Lauret, e COSTA, Ricardo da. Entre a Pintura e a Poesia: o nascimento do Amor e a elevação da Condição Feminina na Idade Média. In: GUGLIELMI, Nilda (dir.). Apuntes sobre familia, matrimonio y sexualidad en la Edad Media. Colección Fuentes y Estudios Medievales 12. Mar del Plata: GIEM (Grupo de Investigaciones y Estudios Medievales), Universidad Nacional de Mar del Plata (UNMdP), diciembre de 2003, p. 4-28 (ISBN 987-544-029-9), http://www.ricardocosta.com/pub/amor.htm.
- REIS, José Monteiro dos. O desejo indizível: a idealização da mulher na "Cantiga de Amor ". Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, Serviço de Documentação e Informação, 1987. (Sem ISBN)
- ROCHA, Zeferino. Paixão, violência e solidão: o drama de Abelardo e Heloísa no contexto cultural do século XII. Recife: Ed. Universitária, UFPE, 1996. ISBN 8573150610
- ROUGEMONT, Denis de. História do amor no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. ISBN 8500011785
Ligações externas
- «José D'Assunção Barros: Os trovadores medievais e o amor cortês – reflexões historiográficas - "Alethéia", UFG, Ano 1, vol.01, n°1, abril/maio de 2008» (PDF)
- «José D'Assunção Barros: A Gaia Ciência dos trovadores medievais - "Revista de Ciências Humanas", UFSC, v. 41, n. 1 e 2, Abril e Outubro de 2007» (PDF)
- «José D'Assunção Barros: Música e Poder no Trovadorismo Ibérico do século XIII - "Revista Temas & Matizes", UNIOESTE, v. 10, Julho a Dezembro de 2006»
- «Amor e Cortesia na Literatura Medieval»