Águas jurisdicionais brasileiras
As águas juridiscionais brasileiras (AJB) ou "Amazônia Azul"[a] são os espaços fluviais e marítimos sobre os quais o Brasil exerce algum grau de jurisdição sobre as atividades, pessoas, instalações e recursos naturais, através do controle e fiscalização pela Marinha do Brasil.[2] Elas abrangem as águas interiores, mar territorial, zona contígua, zona econômica exclusiva (ZEE) e águas sobrejacentes à plataforma continental (PC) onde ela excede a ZEE (para além das 200 milhas náuticas (370 quilômetros) do litoral), numa área total reivindicada de 5 669 852,41 km², que equivale a 67% do território nacional. 2 094 656,59 km² consistem na PC para além da ZEE,[3] um trecho de leito marinho ainda não reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU). A reivindicação brasileira de jurisdição sobre suas águas sobrejacentes é controversa, pois elas estão em alto-mar.[4]
O Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), que entrou em vigor em 1994, e têm procurado expandir suas fronteiras marítimas nos parâmetros desse tratado. O Projeto Leplac (Plano de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira), esforço conjunto da Marinha, Petrobras e comunidade científica, fundamentou uma solicitação de PC estendida à ONU em 2004, e no mesmo ano foi reivindicada uma ZEE ao redor do arquipélago de São Pedro e São Paulo. As propostas de extensão da PC foram revisadas e em 2018 incluíram a elevação do Rio Grande. Geologicamente, a plataforma continental jurídica do Brasil é, em sua maior parte, uma margem continental divergente formada na separação entre a América do Sul e a África, que deixou grandes reservas de petróleo e gás natural na camada pré-sal. O Brasil é teoricamente autossuficiente na produção de petróleo[5] e possuía a 14.ª maior reserva mundial em 2018,[6] quase toda no mar.
O Oceano Atlântico sob jurisdição brasileira é dominado pelas correntes do Brasil e das Guianas, cujas águas quentes e oligotróficas abrigam uma fauna diversa, embora com biomassas relativamente pequenas de cada espécie.[7] 26,4% da ZEE estava sob unidades de conservação em 2021,[8] a maior parte nos arquipélagos remotos de São Pedro e São Paulo e Trindade e Martim Vaz.[9] A maior parte do comércio internacional brasileiro passa pelo mar, mas a Marinha Mercante Brasileira tem participação mínima. A navegação de cabotagem tem importância modesta no comércio interno, apesar do litoral brasileiro ser densamente povoado e ter a maior extensão do Atlântico Sul. Não há contagem oficial da economia do mar brasileira;[10] ela foi estimada em 2,67% do Produto Interno Bruto (PIB) diretamente ligado ao mar em 2015, a maior parte no setor de serviços.[11] Há potenciais ainda não aproveitados de geração de energia renovável, mineração marinha e biotecnologia.
A "Amazônia Azul" é uma denominação menos formal dada pela Marinha, desde 2004, às AJB. Por analogia com a Amazônia "Verde", seria um território de vasta extensão e riquezas naturais, que atraem a cobiça internacional e portanto, devem ser protegidas militarmente. O papel dos militares é amplo, pois a Marinha é tanto uma força de guerra quanto uma guarda costeira (apoiada nessas funções pela Força Aérea Brasileira), desfruta de royalties do petróleo, controla a formação de oficiais da Marinha Mercante e opera navios de pesquisa e bases científicas. Esta mensagem, porém, não convenceu o meio político a financiar os ambiciosos planos de reaparelhamento militar propostos nos anos 2000.[12][13] Num horizonte mais amplo, a "Amazônia Azul" é uma proposta de resgatar a autoconsciência da nação brasileira como uma nação marítima, após um século voltado ao desenvolvimento do interior.[14]
Definição
Direito internacional
A regulação brasileira dos espaços marítimos segue a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), codificação do direito marítimo internacional que entrou em vigor em 1994.[15][16] A normatização das disputas entre os Estados pelo domínio dos mares tem séculos de história e começou a ser unificada mundialmente com a primeira CNUDM, em 1958.[17] 168 Estados ratificavam a III Convenção em 2022. O acordo divide o espaço marítimo adjacente aos Estados costeiros em várias zonas: o mar territorial, a zona contígua, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental.[15][16] As distâncias são medidas em milhas marítimas, ou milhas náuticas, a partir de linhas de base no litoral. As linhas de base podem ser linhas normais, acompanhando a linha de baixo-mar conforme as cartas náuticas, ou linhas retas onde o litoral for muito recortado ou entremeado de ilhas.[18]
No mar territorial, até 12 milhas náuticas (22,2 quilômetros) das linhas de base, a soberania do Estado costeiro estende-se até as águas, o espaço aéreo sobrejacente, o leito e o subsolo do mar.[19] Nas demais zonas marítimas, esses espaços físicos são tratados separadamente.[20] Na zona contígua, das 12 a 24 milhas das linhas de base, o Estado costeiro não tem soberania plena, mas pode tomar medidas de fiscalização para evitar ou reprimir infrações no seu território ou mar territorial. Esta zona faz parte da ZEE, que se estende por 188 milhas, do limite do mar territorial até as 200 milhas náuticas (370 quilômetros) das linhas de base. Nesta faixa o Estado costeiro tem jurisdição sobre a exploração, conservação e gestão dos recursos naturais das águas, solo e subsolo marinhos.[16][21] O alto mar inicia-se após a ZEE.[22]
A plataforma continental na definição jurídica é distinta da plataforma continental geológica e consiste num espaço de leito e subsolo marinho, sem incluir a massa líquida sobrejacente, onde o Estado costeiro tem direitos de soberania sobre os recursos naturais. Ela estende até o "bordo exterior da margem continental, ou até uma distância de 200 milhas marítimas das linhas de base", conforme a CNUDM.[23] Quando a margem continental estiver além das 200 milhas, o Estado costeiro pode propor à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC), organismo internacional instituído pela CNUDM, uma extensão até no máximo 350 milhas,[24][b] ou até "uma distância que não exceda 100 milhas marítimas da isóbata de 2500 metros, que é uma linha que une profundidades de 2500 metros". O Estado solicitante deve realizar um estudo geológico e fornecer informações do pé do talude continental.[26][27] A CLPC analisa a proposta e elabora recomendações sobre a área de plataforma continental. O Estado solicitante pode discordar e propor revisões, mas o limite da sua plataforma continental só é aceito no direito internacional quando um limite definitivo e aceito pela CLPC for consignado ao Secretário-Geral das Nações Unidas.[28][c]
Direito brasileiro
A expressão "águas jurisdicionais brasileiras" (AJB) existe na legislação brasileira no mínimo desde 1941, embora as expressões "águas brasileiras", "águas do mar territorial" ou "águas territoriais" fossem mais comuns.[30][31] O mar territorial é definido desde pelo menos 1850, um regime de direitos exclusivos de pesca, desde 1938, a plataforma continental ("plataforma submarina"), desde 1950,[32][33] e a zona contígua, desde 1966.[32][34] O mar territorial e a plataforma continental foram incluídos entre os "Bens da União" na Constituição de 1967.[35] A França contestou em 1963 a exclusividade da exploração da lagosta na plataforma continental brasileira, argumentando que o animal movimentava-se na massa líquida, e portanto, não era recurso do solo marinho. Os dois lados da disputa moveram navios de guerra aos mares do Nordeste, na chamada "Guerra da Lagosta", e as discussões sobre a locomoção das lagostas contribuiriam à posterior redação da CNUDM.[36][37]
A Lei nº 8.617, de 4 de janeiro de 1993, definiu as zonas marítimas conforme a CNUDM, e o Decreto nº 1.530, de 22 de junho de 1995, reproduziu o texto da convenção, dando-lhe executoriedade doméstica.[15] Ao ratificar a convenção, o Brasil também anunciou que quaisquer manobras militares na sua ZEE deveriam ser notificadas previamente.[38] O conceito de AJB estava se tornando frequente na legislação desde a lei de proibição da caça aos cetáceos nas AJB, de 1987. Outros atos legislativos usavam termos como "águas sob jurisdição brasileira", "águas sob jurisdição nacional" e "águas marítimas jurisdicionais brasileiras", mas a Marinha preferiu AJB. O termo foi usado por muitos anos sem uma definição explícita, até as Normas da Autoridade Marítima para Operação de Embarcações Estrangeiras em Águas Jurisdicionais Brasileiras – NORMAM-04/2001 (Portaria 61/DPC, 22 de setembro de 2001):[39]
São águas jurisdicionais brasileiras (AJB): a) as águas marítimas abrangidas por uma faixa de doze milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular brasileiro, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil, e que constituem o Mar Territorial (MT); b) as águas marítimas abrangidas por uma faixa que se estende das doze às duzentas milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir o Mar Territorial, que constituem a Zona Econômica Exclusiva (ZEE); c) as águas sobrejacentes à Plataforma Continental quando esta ultrapassar os limites da Zona Econômica Exclusiva; e, d) as águas interiores, compostas das hidrovias interiores, assim consideradas rios, lagos, canais, lagoas, baías, angras e áreas marítimas consideradas abrigadas
A legislação brasileira regula o tráfego marítimo, a conservação ambiental, a exploração dos recursos naturais e a pesquisa científica nas AJB.[40][41] A Marinha tem competência para completar e detalhar as lacunas na legislação marítima brasileira, e portanto, prevalecem as definições nas suas normas.[41][d] Definições equivalentes foram incluídas em outras NORMAM e na Doutrina Básica da Marinha de 2014, que esclareceu mais ainda que a ABJ não é considerada alto-mar. Decretos presidenciais e o Livro Branco da Defesa Nacional, ratificado pelo Congresso Nacional em 2018, aceitaram a definição da Marinha.[44][45]
Águas sobrejacentes à plataforma continental estendida
Alguns juristas criticam a pretensão do Estado brasileiro a exercer jurisdição sobre as águas sobrejacentes à plataforma continental estendida. Para além das 200 milhas náuticas, a massa de água é considerada alto-mar, mesmo quando o leito e o subsolo pertencem à plataforma continental.[46][47][48] Alexandre Pereira Silva, no International Journal of Marine and Coastal Law, concluiu em 2020 que o conceito de AJB é inconsistente com a CNUDM.[48] Tiago V. Zanella, autor de livros e artigos em Direito do Mar,[47] não desmerece a "enorme importância estratégica" do conceito,[49] mas apresenta a hipótese de uma embarcação estrangeira pescando cetáceos nas águas sobrejacentes à plataforma continental estendida, para além das 200 milhas do litoral brasileiro. A legislação brasileira obrigaria a Marinha a coibir essa pesca, que é ilegal nas AJB. Os proprietários da embarcação recorreriam a um tribunal internacional, como a Corte Internacional de Justiça ou o Tribunal Internacional do Direito do Mar, que lhes daria ganho de causa. O Brasil, por ter ratificado a convenção, teria que cumprir a decisão.[50]
O capitão de mar e guerra Alexander Neves de Assumpção, em tese da Escola de Guerra Naval, reconheceu o risco dos comandantes navais infringirem as normas internacionais ratificadas pelo Brasil. Argumentou, entretanto, que "o conceito de AJB não precisa ser mudado", pois já é moderado pelas expressões legais "jurisdição, em algum grau", "para os fins de controle e fiscalização" e "dentro dos limites da legislação internacional e nacional". Para fiscalizar a exploração do fundo marinho, o Brasil ainda teria uma jurisdição limitada (que não se confunde com soberania) sobre as águas sobrejacentes, mesmo quando elas estão em alto-mar. Nenhum país contestou a definição brasileira, e a Argentina e o Chile também reivindicam jurisdições para além da prevista na CNUDM. O que restaria a fazer seria esclarecer nas normas quais tipos de fiscalizações são permitidas.[51]
Amazônia Azul
O almirante de esquadra Roberto de Guimarães Carvalho, comandante da Marinha do Brasil em 2004, publicou na Folha de S. Paulo o texto opinativo "A outra Amazônia", no qual foi o primeiro a usar a expressão "Amazônia Azul", por analogia com a "Amazônia Verde", ou seja, a Amazônia Legal. A Amazônia Azul seria a faixa de oceano até 200 milhas náuticas e mais a plataforma continental estendida e suas águas sobrejacentes, ou seja, a mesma definição das águas jurisdicionais brasileiras. A Amazônia Azul é um termo "menos técnico e mais lúdico"; a expressão que existe na legislação é "águas jurisdicionais brasileiras".[52][53][e] O regime jurídico nas duas Amazônias não é o mesmo: a soberania brasileira é plena na "verde", mas na ZEE e plataforma continental, só se estende aos recursos naturais.[54]
No artigo, o almirante lamentou o desconhecimento da opinião pública brasileira pelo significado estratégico e econômico da área marítima ao qual tem direito, apesar de 80% da população viver a menos de 200 km do litoral. A Amazônia Verde havia recentemente sido alvo de iniciativas governamentais como o Projeto Calha Norte e o Sistema de Vigilância da Amazônia, sem correspondentes na Amazônia Azul, apesar desta ser equivalente na sua vastidão física e potencial econômico. Conforme suas cifras, 95% do comércio exterior brasileiro e 80% da produção de petróleo estavam no mar; "somos de tal maneira dependentes do tráfego marítimo que ele se constitui em uma de nossas grandes vulnerabilidades".[55]
Conforme seu criador, o conceito não disputa com a Amazônia verde, mas apenas se aproveita da sua presença na consciência pública.[56] A Marinha também participou do incremento da presença militar na Amazônia verde, embora a um ritmo mais lento que as outras forças, pois seu foco está nas águas azuis.[57] Oficiais da Marinha e do Exército admitem pensar em conjunto nas "duas Amazônias", mesmo reconhecendo suas particularidades. Várias ameaças externas seriam comuns a ambas.[58] A "cobiça internacional" das riquezas naturais é uma ideia central no imaginário militar sobre a Amazônia verde,[59] e o almirante Carvalho argumentou que "toda riqueza acaba por se tornar objeto de cobiça, impondo ao detentor o ônus da proteção".[55] Desta forma, clama-se por ações de sensoriamento e presença em ambas Amazônias para repelir ameaças à soberania nacional.[60][61]
Objetivos
A Amazônia Azul é um instrumento propagandístico para sensibilizar a opinião pública,[62] uma "bandeira levantada pela Marinha do Brasil", criada "para fomento da mentalidade marítima da população brasileira".[63] Para José Augusto Fontoura Costa, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a lógica da Amazônia Azul põe os investimentos em defesa naval como a condição material para fazer valer a posse dos recursos garantidos no papel. Esta retórica vem carregada das ambições da Marinha para uma parcela maior do orçamento federal e da atenção da opinião pública. Portanto, tem "sofismas e fragilidades próprios de qualquer discurso de ação política". Ainda assim, "ajuda a redefinir a percepção das Forças Armadas brasileiras e recolocar no debate nacional questões extremamente pertinentes a respeito de segurança e defesa", trazendo "à opinião pública muitas discussões antes restritas aos círculos dos estrategistas militares e diplomáticos", o que pode inclusive fazer o conceito sair de seu "controle semântico e prático".[64]
Na Escola Superior de Guerra, Matheus Marreiro argumenta que este conceito é parte da iniciativa política da Marinha para angariar "apoio popular para a criação de uma estratégia marítima, para as tentativas brasileiras de ampliar os limites marítimos nacionais e para a aquisição de novos meios navais para a defesa do espaço e dos recursos". Neste sentido, a Marinha tem um discurso geopolítico próprio, no qual o Atlântico Sul é apresentado como zona natural de influência e projeção de poder militar pelo Brasil.[65] Este não é necessariamente o único paradigma geopolítico para o Atlântico Sul, podendo-se também estudar os discursos do Ministério das Relações Exteriores, com a formação da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, os discursos ambientalistas e as abordagens de outros países, como o "Pampa Azul" da Argentina.[66] A Marinha reconhece que a Amazônia Azul é multifacetada, com vertentes político-estratégica, científica, ambiental e econômica.[67]
Divulgação
A Marinha empreende uma campanha nacional para divulgar o conceito.[68] Logo após o artigo do almirante Carvalho na Folha de São Paulo, em 2004, o assunto foi tema de reportagens televisivas e matérias de Roberto Godoy no Estado de S. Paulo. Entretanto, o jornalista Roberto Lopes avaliou que a Marinha não conseguiu o impacto desejado na opinião pública. O tema passou despercebido pela mídia independente e não encontrou porta-vozes de credibilidade suficiente no eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte-Brasília. O significado da "Amazônia Azul" não era óbvio a todos e precisava ser explicado ao público-alvo, pois remetia a alguma iniciativa da Marinha na "Amazônia Verde". Ademais, a "ênfase que os chefes navais emprestavam às dimensões enormes da área marítima sob a responsabilidade do Brasil parecia perfeitamente clara e compreendida, mas faltava o elemento de convencimento acerca do perigo que a espreitava".[69]
O Programa de Mentalidade Marítima (Promar) promove palestras em universidades e instituições de pesquisa, concursos de trabalhos escritos e publicações de livros (Amazônia Azul - O mar que nos pertence e O mar no espaço geográfico brasileiro, o último dos quais foi distribuídos nas escolas).[70] O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) reconheceu a expressão "Amazônia Azul" como marca registrada da Marinha em 2009.[71] Uma estatal criada em 2012 para participar do Programa de Desenvolvimento de Submarinos foi batizada de "Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S.A." ou Amazul.[72] O I Fórum Internacional de Gestão de Baías, realizado em Salvador em 2014, declarou a Baía de Todos os Santos como sede da Amazônia Azul.[73] Em 2015 o Congresso Nacional designou a data de 16 de novembro, quando a CNUDM entrou em vigor em 1994, como "Dia Nacional da Amazônia Azul".[74]
Apesar destas iniciativas, apenas 6% dos brasileiros conheciam o conceito da Amazônia Azul e outros 18% haviam ouvido falar em 2014, conforme uma pesquisa de opinião encomendada pelo Comando da Marinha à Fundação Getúlio Vargas. 60% dos entrevistados concordavam que a Marinha do Brasil contribuía muito ao país, mas apenas 10% sabiam exemplificar suas ações. Tópicos de transporte marítimo, produção de petróleo e direito marítimo internacional são desconhecidos do público em geral. Intelectuais da Marinha lamentam essa ausência de "mentalidade marítima" na população desde os anos 1970. Nesta perspectiva, a "geografia imaginativa" da população punha ênfase no mar nos períodos colonial e imperial. Com o tempo os fatores socioeconômicos e de política interna e externa mudaram o foco do imaginário coletivo e dos projetos da elite (a Marcha para o Oeste, construção de Brasília, priorização do transporte rodoviário, etc.) para o interior do continente. O paradigma da Amazônia Azul objetiva fazer os brasileiros se verem novamente como nação marítima.[14]
A princípio a área da Amazônia Azul e mesmo seus arquipélagos ainda não eram delimitados nos atlas brasileiros.[75] A partir de 2023–2024, várias emissoras de televisão, como a Record, Correio Braziliense, Empresa Brasil de Comunicação, Band, CNN Brasil, Rede TV e Jovem Pan incluíram mapas com a Amazônia Azul na sua programação.[76] Várias delimitaram a área nos mapas da previsão do tempo. A edição de 2024 do Atlas Geográfico Escolar, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), delimitou o "novo limite leste do sistema costeiro-marinho do Brasil". A mudança foi divulgada em seminários nos estados litorâneos brasileiros.[77]
Extensão física
O litoral brasileiro mede 7 491 km,[78] o maior do Atlântico Sul.[f] A partir de suas linhas de base projetam-se, nos números da Marinha, 3 575 195,81 km² para dentro da linha das 200 milhas, incluindo 157 975,47 km² de mar territorial e 325 328,34 km² de zona contígua. 2 094 656,59 km² de plataforma continental estendida são somadas para chegar a uma área total de 5 669 852,41 km².[3] Isto equivale a 67% do território nacional (8,5 milhões de km²) e 1,1 vezes o tamanho da Amazônia Legal (5,2 milhões de km²).[67] Como as AJB também incluem as águas internas,[80] cerca de 60 mil quilômetros de hidrovias podem também ser contabilizadas na sua extensão.[81] A área reivindicada de 5,7 milhões de km² é o resultado das propostas revisadas para a plataforma continental, da qual a mais recente é a de 2018.[82] As propostas anteriores obtinham um total de 4 451 766 km² de "Amazônia Azul".[83]
Esta área tem dois limites laterais marítimos, um com a Guiana Francesa e outro com o Uruguai, definidos por linhas loxodrômicas (que cortam os meridianos em ângulos constantes) a partir de pontos na fronteira: nas redondezas do rio Oiapoque, no primeiro caso, e no Farol do Chuí, no segundo. Os limites foram decididos em 1972 com o Uruguai e em 1981 com a França.[84]
Mar territorial
Desde o século XIX, o mar territorial brasileiro era definido até uma largura de três milhas. Os direitos exclusivos de pesca foram fixados a doze milhas do litoral em 1938.[32][85] Um decreto presidencial acrescentou mais três milhas de mar territorial em 1966, num regime de "seis milhas mais seis milhas", com características de zona contígua e de direito de pesca exclusivos até as doze milhas do litoral.[35] Em 1969 o mar territorial foi mais uma vez estendido, chegando a doze milhas de largura.[86][87]
Em 1970 o governo de Emílio Garrastazu Médici expandiu o mar territorial até 200 milhas marítimas, reivindicando 3,2 milhões de km² do oceano. Todo o leito e subsolo do mar, assim como o espaço aéreo, também estariam em soberania brasileira.[88] Num momento em que a ditadura militar vislumbrava o "Brasil Grande Potência",[89] a decisão atendia aos interesses pesqueiros e aos temores de atividades estrangeiras (exercícios militares e exploração dos lençóis petrolíferos recém-descobertos no litoral do Rio de Janeiro).[90] A resposta da opinião pública nacional foi positiva, na crista do clima ufanista do período. No exterior, países latino-americanos endossaram a medida,[91] que não era sem precedentes. A Argentina e Uruguai já haviam feito declarações semelhantes.[92]
Não havia largura máxima do mar territorial fixada pelo direito internacional do período, mas no início dos anos 70 a maioria dos Estados, incluindo as potências marítimas tradicionais, não reconhecia jurisdições para além das doze milhas do litoral.[93] Desta forma, o Itamaraty recebeu notas de protesto dos Estados Unidos, União Soviética e nove outros países industrializados. A esquadra brasileira, com apenas 57 embarcações pesadas, não tinha capacidade efetiva de patrulhar toda a área reivindicada.[94] Ao assinar a III CNUDM, o Brasil cedeu à pressão das grandes potências, na opinião do diplomata Luiz Augusto de Araújo Castro.[95] Ao harmonizar o tratado com a legislação nacional, em 1993, o governo brasileiro retraiu os limites do mar territorial, de 200 para 12 milhas náuticas, mas assegurou a ZEE até as 200 milhas.[18][96]
ZEE
O banco de dados Sea Around Us, da Universidade da Colúmbia Britânica, quantifica uma ZEE brasileira de 2 400 918 km² a partir do litoral, 468 599 km² ao redor do arquipélago de Trindade e Martim Vaz, 363 373 km² ao redor do arquipélago de Fernando de Noronha e 413 641 km² ao redor do arquipélago de São Pedro e São Paulo.[97] Os dados oficiais brasileiros são de 3 539 919 km² de ZEE,[98] a 11.ª maior do mundo,[99] com um volume de cerca de 10 bilhões de m³ de água.[7] Ainda assim, é uma área relativamente pequena em comparação ao comprimento do litoral,[78] pois o Brasil tem poucas ilhas a grandes distâncias da costa. Os arquipélagos de Trindade e Martim Vaz e São Pedro e São Paulo, com suas áreas terrestres diminutas, contribuem com cerca de 25% dessa área.[78]
O artigo 121 da UNCLOS confere ZEE e plataforma continental às ilhas, mas nega tais privilégios aos rochedos que não se prestem, por si próprios, à habitação humana ou vida econômica.[100][78] Dentre as ilhas oceânicas brasileiras, somente Fernando de Noronha, Trindade e Belmonte (em São Pedro e São Paulo) são permanentemente habitadas.[101][102] Fernando de Noronha tem a maior população, com 3 167 habitantes no censo de 2022.[103] Trindade e São Pedro e São Paulo têm bases de pesquisa operadas pela Marinha.[102] O Atol das Rocas tem somente um farol automático.[104] A CNUDM reconheceu-o dentro da área de jurisdição marítima de Fernando de Noronha, assim como a ilha de Martim Vaz foi incluída na área de Trindade.[105] Entretanto, representantes da Colômbia, em disputa de plataforma continental com a Nicarágua, argumentaram em 2019 que o Brasil reivindica o local como ilha e notam no mapa produzido pelo Brasil que a ZEE projeta-se a partir do atol.[106]
Ocupação de São Pedro e São Paulo
Tanto em Trindade quanto em São Pedro e São Paulo, a extensão da ZEE é um dos objetivos declarados da presença da Marinha. A soberania brasileira sobre Trindade já foi contestada pelo Reino Unido, em 1895–1896, e uma presença permanente é mantida desde 1957, com uma população de 36 militares em 2023.[107][108] Por outro lado, São Pedro e São Paulo era um território negligenciado e sem nenhum histórico de habitação.[109] Somente após a entrada em vigor da CNUDM o Comando da Marinha tomou medidas concretas para ocupar a área. O "Programa Arquipélago" (Proarquipélago), iniciado em 1996, instalou uma estação científica na ilhota Belmonte, e a toponímia foi alterada de "Penedos de São Pedro e São Paulo" para "Arquipélago de São Pedro e São Paulo".[101][110]
A estação tinha capacidade original para quatro pessoas (pesquisadores e militares) por períodos de 15 dias. A habitabilidade é precária: pesquisadores só recebem acesso com treinamento de sobrevivência prévio, e um navio é mantido em alerta constante para acudir ao arquipélago, que está a cerca de 1 000 km do litoral brasileiro. As ilhotas e penedos têm largura máxima de 420 m, carecem de solo e água potável e estão sujeitas a eventos sísmicos e condições meteorológicas severas.[111] No entendimento oficial brasileiro, a presença permanente é suficiente para caracterizar uma ilha conforme o artigo 121 da CNUDM, independente das dificuldades de habitação e do rodízio quinzenal da população.[112]
A Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN) publicou, a partir de 1995, cartas náuticas com uma linha vermelha tracejada no raio de 200 milhas náuticas ao redor do arquipélago, indicando a ZEE e plataforma continental potenciais.[113] A Marinha apresentou à Comissão Interministeral para os Recursos do Mar (CIRM) seus argumentos em 1999, citando os casos de Rockall, Okinotorishima, algumas ilhas do Havaí, Clipperton, Jan Mayen e Aves. O Ministério das Relações Exteriores foi favorável, notando: "Embora a Convenção sobre o Direito do Mar seja clara quanto aos rochedos que não se prestam a vida humana, não se pode negar que existe ocupação permanente do Arquipélago em questão, ainda que seus "habitantes" dependam do continente para a subsistência". A grande preocupação era a contestação por outros signatários da CNUDM.[114] Com a aprovação do Presidente da República e do Conselho de Defesa Nacional, em 27 de agosto de 2004 o Brasil submeteu à ONU, no Bulletin of the Law of the Sea, as coordenadas dos limites externos da sua ZEE, incluindo, pela primeira vez, a área ao redor de São Pedro e São Paulo.[115]
O Proarquipélago rendeu ao Brasil o direito a uma área equivalente à do estado da Bahia,[116] cujos limites estão mais próximos da África do que do litoral brasileiro.[117] O artigo 121 tem suas controvérsias, entre elas a da arbitração do caso do mar da China Meridional, cujas conclusões podem contradizer a interpretação brasileira do caso de São Pedro e São Paulo. Conforme o Tribunal Permanente de Arbitragem, a "mera presença de um pequeno grupo de pessoas" numa feição "que só é capaz de sustentar a habitação pela contínua entrega de suprimentos" não configura uma ilha conforme o artigo 121. Entretanto, desde a reivindicação brasileira do arquipélago, não houve qualquer objeção de outro país.[118]
Plataforma continental
As primeiras definições da extensão da plataforma continental brasileira misturavam critérios de profundidade (até 200 metros) e explotabilidade dos recursos.[119] A "plataforma submarina", pela definição de 1968, seria o "leito e o subsolo das regiões submarinas adjacentes às costas, mas situadas fora do mar territorial, até uma profundidade de 200 metros [...] ou além deste limite até o ponto em que a profundidade das águas sobrejacentes permita o aproveitamento dos recursos das referidas regiões".[86][120] A extensão do mar territorial para 200 milhas náuticas, em 1970, absorveu a plataforma continental como área distinta, embora ela ainda fosse mencionada como bem da União na Constituição Federal.[121] Quando a legislação brasileira ajustou-se à CNUDM, em 1993, a plataforma continental continuou definida até as 200 milhas (o limite da ZEE), mas já estava em curso uma iniciativa para identificar um limite da plataforma continental para além da ZEE.[122] Na opinião do diplomata Christiano Figueirôa, "a definição dos limites exteriores da plataforma continental do Brasil além das 200 milhas marítimas representa o maior procedimento de delimitação do país desde a era do Barão do Rio Branco". Luiz Alberto Figueiredo vê na plataforma continental o último limite jurídico a consolidar, pois as fronteiras terrestres já estão fixas.[123]
Primeiros levantamentos
A coleta de dados de campo para definir a margem externa da plataforma continental brasileira começou em 1986. As informações preexistentes, como as do Projeto Remac (Reconhecimento da Margem Continental) realizado na década anterior, não tinham cobertura suficiente, especialmente longe da costa, para substanciar reivindicações brasileiras.[124] Em 1988 estes trabalhos foram formalizados no Projeto Leplac (Plano de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira), executado pela Diretoria de Hidrografia e Navegação da Marinha, a Petrobras e a comunidade científica nacional, representada pelo Programa de Geologia e Geofísica Marinha (PGGM) e várias instituições de ensino.[125] Para o almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal, o Leplac foi a semente do conceito de Amazônia Azul.[126]
A primeira fase do Leplac durou até 1996 e empregou os navios da DHN Almirante Câmara (H-41), Álvaro Alberto (H-43), Sirius (H-21) e Antares (H-40), nos quais embarcaram especialistas da Marinha, pesquisadores civis e, durante as coletas de dados geofísicos, profissionais da Petrobras. As expedições coletaram dados de sísmica multicanal para determinar a espessura de sedimentos na margem, desde a plataforma continental geológica até as 350 milhas de distância das linhas de base. Dados de gravimetria e magnetometria permitiram estimar outras informações, incluindo o limite entre as crostas continental e oceânica. Levantamentos batimétricos identificaram o pé do talude continental, o traçado da isóbata de 2 500 m e novos modelos de geomorfologia marinha. Ao todo, a primeira fase do Leplac coletou 46 966 km de linhas bidimensionais sísmicas, 89 369 km de dados batimétricos, 97 237 km gravimétricos e 93 604 km magnetométricos. Muitos projetos de pesquisa nas universidades aproveitaram estes dados.[127] Os poucos militares e civis na linha de frente desse processo são idealizados nas fontes oficiais como os "bandeirantes das longitudes salgadas".[128]
Proposta de 2004
A preparação, submissão e exame de uma proposta de extensão de plataforma continental é um trabalho demorado, e o prazo original de dez anos após a entrada em vigor da CNUDM (1994) teve que ser estendido. Em dezembro de 2003 a Assembleia Geral das Nações Unidas incentivou os signatários da Convenção a apressarem suas propostas. O Brasil, por ter começado cedo os seus levantamentos, tornou-se o segundo Estado costeiro e primeiro país em desenvolvimento a submeter sua proposta. A Proposta de Limite Exterior da Plataforma Continental Brasileira foi apresentada à CLPC em 17 de maio de 2004. A proposta, endereçada ao Secretário-Geral das Nações Unidas, era acompanhada de cinco CD-ROMs com as coordenadas geográficas de todos os pontos identificadores dos limites, fundamentadas nas informações colhidas pelo Leplac.[129][130]
A reivindicação brasileira aplicava-se a 911 847 km² de plataforma continental além das 200 milhas, alterados para 953 825 km² num adendo em 2006.[131] As áreas em questão estavam no cone do Amazonas, cadeia Norte Brasileira, margem oriental da cadeia Vitória-Trindade e platô de São Paulo até o limite lateral marítimo com o Uruguai. Peritos brasileiros tiveram cinco reuniões de trabalho com os peritos do CLPC, que encaminhou seu Relatório de Recomendações em abril de 2007. Somente 765 000 km² foram recomendados como plataforma continental. O Estado brasileiro tomou então a decisão política e estratégica de não depositar esses limites parciais junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas, ao contrário da Austrália, e depositar seus limites somente após a solução de todas as divergências com a CLPC.[130][132]
O governo dos Estados Unidos, embora não fosse signatário da Convenção, anunciou suas objeções à proposta brasileira. Segundo a representante americana na ONU, fontes públicas e dados americanos apresentavam uma espessura sedimentar e "linha de Gardiner" distinta dos dados brasileiros. Os americanos também questionaram a associação da cadeia Vitória-Trindade à margem continental brasileira, pois teria sido formada por hotspots oceânicos. Com base nas suas condições para a objeção de um terceiro Estado, a CLPC não chegou a considerar os argumentos americanos.[133]
Propostas revistas
Uma segunda fase do Leplac, praticamente toda realizada em 2009–2011, preencheu lacunas nos dados, especialmente nas áreas de discordância com a CLPC. O Antares, MV Discoverer, MV Sea Surveyor e MV Prof. Logachev coletaram 92 703 km de perfis de batimetria multifeixe, 11 893 km de sísmica multicanal, 81 157 km de gravimetria, 76 618 km de magnetometria, 61 896 km de sísmica multicanal simplificada via Mini Air Gun e 71 966 km de perfis 3,5 kHz. Também foram lançadas sonoboias e colhidas amostras de rochas dos montes submarinos nas cadeias Vitória-Trindade e Norte Brasileira.[134] O programa de Prospecção e Exploração de Recursos Minerais da Área Internacional do Atlântico Sul e Equatorial (Proarea) e iniciativas subsequentes estudaram a elevação do Rio Grande (ERG), região até então excluída das reivindicações. Os primeiros estudos não confirmavam definitivamente a região como parte da crosta continental.[135] Pesquisadores nesta área remota encontram fortes correntes, condições meteorológicas agitadas e um leito marinho íngreme e rochoso.[136]
Munido dos dados, o Brasil submeteu três novas propostas: a Proposta Parcial Revista da Margem Sul (10 de abril de 2015), referente à área na altura dos estados do Rio Grande do Sul e Paraná, a Proposta Parcial Revista da Margem Equatorial (8 de setembro de 2017), referente ao Cone do Amazonas e Cadeia Norte Brasileira, e a Proposta Parcial Revista da Margem Oriental e Meridional (7 de dezembro de 2018), refente à Cadeia Vitória-Trindade, o platô de Santa Catarina e a ERG.[132] A área total de plataforma continental estendida, somando as propostas revisadas, chegaria a 2 094 656,59 km².[3][82]
Reivindicar a ERG seria territorializar uma parte da "Área", o segmento do leito marítimo considerado patrimônio comum da humanidade pela CNUDM. Do ponto de vista das autoridades brasileiras, o processo está em curso em todo o planeta e portanto, o Brasil deve estender suas próprias áreas marítimas.[137] Na reunião da CIRM de 30 de abril de 2019, um representante do Ministério das Relações Exteriores argumentou que "se o Brasil não for proativo nessa área, mais dia, menos dia, apareceria ali uma potência - não seria um país de capacidade inferior a nossa - para prospectar minério, petróleo e gás na ERG. Seria realmente uma situação muito desconfortável".[138] A CLPC aceitou as reivindicações referentes aos litorais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina (170 mil km²) em 2019.[139] Até agosto de 2024 o Brasil ainda não havia chegado a um entendimento final com a CLPC, e o aumento territorial permanecia em espera.[77]
Oceanografia
Geomorfologia
Do litoral brasileiro até as planícies abissais do Atlântico Sul estende-se uma porção da margem continental sul-americana, que é a transição entre as crostas continental e oceânica. Comparando as terminologias do Direito marítimo e da geografia, esta margem continental, composta de uma plataforma continental, talude continental e elevação continental, é o que mais se aproxima da "plataforma continental" definida na CNUDM. A plataforma jurídica é todo o prolongamento natural submerso do Estado costeiro e não só sua plataforma continental geomorfológica.[140]
A maior parte da margem continental brasileira é uma clássica margem divergente, formada pela ruptura do supercontinente Gondwana e o distanciamento das placas Sul-Americana e Africana.[141] Este tipo de margem possui uma larga plataforma continental, um declive acentuado, mas estável no talude, ao pé do qual os sedimentos acumulados formam a elevação continental, que decresce em espessura e desce suavemente até as planícies abissais.[142] Devido a vários processos tectônicos e sedimentares, nem sempre essas três faixas são nitidamente identificáveis. E nem toda a margem continental brasileira é o Atlântico Sul divergente: o extremo norte está na margem divergente do Atlântico Central, e parte da região equatorial é uma margem transformante, na qual as placas continentais deslizaram lado a lado.[143][144]
20,5% da área da ZEE brasileira está a profundidades de até 200 m, consideradas parte da plataforma continental. Predominam as feições de mar profundo. O leito marinho tem ainda 13,3% de talude, 1,7% de terraço, 1,4% de cânions submarinos, 40% de elevação continental, 29,6% de planície abissal, 4,9% de cones submarinos, 2,2% de montes submarinos, 1,4% de guyots, 1,2% de dorsais e 1,4% de dorsais divergentes. A soma das porcentagens excede 100%, pois algumas feições ocupam o mesmo espaço.[99]
Feições submarinas
Acompanhando o litoral brasileiro a partir do norte, a primeira grande feição é o cone do Amazonas. Os sedimentos depositados pelo rio formam as maiores espessuras sedimentares e larguras da plataforma continental geomorfológica (até 300 km) e da margem (750 km) em todo o litoral brasileiro. A batimetria segue um gradiente até profundidades de cerca de 4,8 km na planície abissal de Demerara.[145] A leste estão os montes submarinos do Maranhão e as cadeias Norte-Brasileira e de Fernando de Noronha, formadas em direção paralela à costa pela margem transformante do Atlântico Equatorial. A cadeia de Fernando de Noronha tem duas regiões emersas, o atol das Rocas e o arquipélago de Fernando de Noronha.[146] A plataforma continental tem 170 km de largura no delta do rio Parnaíba, estreitando para leste até 50 km, no litoral cearense, e mais ainda até o cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte.[147]
O arquipélago de São Pedro e São Paulo é um caso à parte, sendo uma porção emersa da Dorsal Mesoatlântica. Suas rochas são típicas do manto, expostas à superfície à medida que as forças tectônicas abriram falhas na crosta oceânica.[148][149]
O Nordeste tem os trechos mais estreitos da margem continental (100 km) e da plataforma continental geomorfológica (30–50 km),[150] chegando a meros oito quilômetros de plataforma no Recife.[151] Dos paralelos 10° a 16° S, isto se deve à influência do Cráton São Francisco.[152] A elevação continental desce até a planície abissal brasileira. O trajeto é seguido por algumas feições perpendiculares à costa, de norte a sul: os montes submarinos do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Bahia e a cadeia Ferraz.[153] A margem continental alarga-se novamente a partir do banco de Abrolhos. Este se conecta via banco Besnard à cadeia Vitória-Trindade, sequência de cerca de 30 montes submarinos em 950 km de extensão, culminando, na sua ponta leste, nas ilhas de Trindade e Martim Vaz.[150]
Mais a sul, a margem continental excede 500 km de largura. As bacias sedimentares de Campos, Santos e do Paraná compõem o platô de São Paulo, maior platô marginal da costa brasileira, situado entre o talude e a elevação continentais.[154] Seus limites externos encontram os montes submarinos Jean Charcot e o canal submarino de São Paulo. A planície abissal brasileira chega ao seu limite sul nesta região, onde é separada da planície abissal argentina pelo canal submarino Vema e a elevação do Rio Grande.[153] A ERG localiza-se entre os paralelos 28° e 34° S,[155] numa área total de 500 mil km², erguendo-se de um assoalho de 5 km de profundidade até uma altura 650 m abaixo do nível do mar.[156] Sua origem e evolução são controversas.[155] Ela já teve terra emersa[156] e está alinhada à província magmática do Paraná-Etendeka e às cadeias de Walvis, Gough e Tristão da Cunha.[157]
A margem continental sul, do platô de São Paulo até a fronteira com o Uruguai, contém o platô de Santa Catarina, o terraço do Rio Grande e o cone do Rio Grande, ao longo dos quais está a bacia de Pelotas.[154]
Correntes marinhas
As duas principais correntes oceânicas superficiais ao largo do litoral brasileiro são a Corrente do Brasil e a Corrente Norte do Brasil ou Corrente das Guianas,[158] ambas de águas quentes e oligotróficas, nas quais a termoclina (camada de rápida queda de temperatura) está em grande profundidade.[159][160]. Elas surgem ao redor do paralelo 11° S,[161] entre Recife e Maceió,[159] quando a Corrente Equatorial Sul, impelida a oeste pelos ventos alísios, encontra o litoral do Nordeste e se bifurca. A maior parte de sua água prossegue a noroeste na direção do Caribe, formando a Corrente Norte do Brasil, e o restante flui a sudoeste, formando a Corrente do Brasil. Ambas são paralelas à costa.[162][161] A Corrente Norte do Brasil atinge velocidades de 1–2 m/s, empurrando a noroeste a pluma do rio Amazonas, que por si só contribui 20% do fluxo anual de água doce para os oceanos. As águas amazônicas podem ser encontradas a até 320 km do litoral.[163]
A Corrente do Brasil é o braço ocidental do Giro do Atlântico Sul, que circula no sentido anti-horário entre a América do Sul e a África. Ela flui até as latitudes de 35°–40° S, onde tem uma confluência com as águas frias da Corrente das Malvinas e ambas giram para o leste, formando a Corrente do Atlântico Sul. O Giro retorna à América do Sul através da Corrente Equatorial Sul. A massa de água na superfície da Corrente do Brasil é a chamada Água Tropical, com temperaturas de 18 °C a 28 °C e salinidade média de 35,1 a 36,2 ppm, valores semelhantes aos encontrados no seu equivalente no Atlântico Norte, a Corrente do Golfo. Entretanto, ela é mais lenta, com velocidades inferiores a 0,6 m/s. Sua profundidade chega a 200 metros de coluna de água na quebra da plataforma continental.[164][161]
Nas regiões Sul e Sudeste a Corrente do Brasil se afasta ou se aproxima ao longo ano, definindo uma forte sazonalidade na temperatura e salinidade da água do mar.[160] No inverno, a Corrente das Malvinas pode chegar até o paralelo 24° S.[159] A mistura de sua água, denominada Água Subantártica, com a Água Tropical forma a Água Central do Atlântico Sul (ACAS), que por ser mais fria e densa, forma a camada inferior a 200 metros na Corrente do Brasil. Determinados pontos da costa (Cabo Frio e Cabo de Santa Marta) estão sujeitos a ressurgências desta água quando os ventos de nordeste empurram as águas de superfície.[165][166]
Na bacia de Santos a Água Tropical tem 4,19 ml/L de oxigênio dissolvido, 0,02 μmol/L de fosfato, 1,10 μmol/L de nitrato e 2,04 μmol/L de silicato. Em contraste, a ACAS tem 5,13 ml/L de oxigênio, 0,51 μmol/L de fosfato, 6,14 μmol/L de nitrato e 5,12 μmol/L de silicato.[167] No paralelo 20° S, durante o primeiro semestre, a ACAS desce até 660 m de profundidade. Mais abaixo estão a Água Intermediária Antártica (700–1 200 m), a Água Profunda do Atlântico Norte (1 200–2 000 m) e a Água de Fundo Antártica.[168]
Clima
As águas jurisdicionais brasileiras têm três padrões climáticos: um ocorre numa região norte, do Cabo Orange, Amapá, ao Cabo Branco, Paraíba, outro, central, do Cabo Branco ao Cabo de São Tomé, Rio de Janeiro, e mais um, sul, do Cabo de São Tomé ao Arroio Chuí. Na região norte o clima é dominado pela Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), uma faixa de nuvens direcionadas no sentido leste-oeste pelos ventos alísios. Ela se desloca abaixo da Equador, de janeiro a abril, embora possa mudar de posição rapidamente, e está associada a chuvas convectivas, muitas vezes com temporais. Em alguns anos ela permanece mais a norte, causando seca no Nordeste e temperaturas menores nas partes meridionais do Atlântico tropical, com o inverso ocorrendo quando ela permanece mais ao sul.[169]
A região central é mais sazonal. Os ventos alísios de leste e nordeste trazem umidade na direção da costa e ficam mais secos e fortes no inverno, de junho a agosto, devido ao anticiclone de Santa Helena. Neste período a precipitação aumenta entre o Cabo Branco e Salvador e diminui ao sul. Ondas de leste e, de maio a outubro, frentes frias trazem chuvas, e no último caso, mares agitados e quedas de temperatura.[170]
A região sul é dominada por dois fenômenos, a Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS) e os ciclones extratropicais. A ZCAS é uma faixa de nebulosidade de sentido noroeste-sudeste que ocorre principalmente no verão, ao sul do litoral baiano, causando vários dias de mau tempo. Os ciclones extratropicais, que podem ocorrer até uma vez por semana no inverno, deslocam-se do sul do continente na direção nordeste e são acompanhados de frentes frias. Durante sua passagem ocorrem baixas temperaturas, chuvas, mares agitados e ventos superiores a 60 km/h, de trajetória paralela à costa, às vezes naufragando pequenas embarcações pesqueiras. Após sua passagem, persistem massas de ar frio, algumas secas, que passaram pela cordilheira dos Andes, e outras úmidas e menos frias, oriundas do mar de Weddell.[171]
As ilhas oceânicas brasileiras têm climas tropicais de influência marítima. Trindade tem temperatura média anual de 25 °C[172] e estação seca de janeiro a março.[173] Fernando de Noronha tem uma temperatura média anual de 27 °C, com estação seca de agosto a fevereiro.[174]
Dados oceanográficos e meteorológicos são tradicionalmente coletados por navios, estações costeiras e boias de deriva ou fundeadas, o que é trabalhoso de se conseguir sobre grandes áreas e alta repetitividade temporal, mas pode ser facilitado por satélites. Este monitoramento é desenvolvido no Programa-Piloto para o Sistema Global de Observação dos Oceanos (GOOS/Brasil), aprovado pela CIRM em 1995, do qual fazem parte o Programa Nacional de Boias e o Pilot Research Moored Array in the Tropical Atlantic (Pirata), programa conjunto brasileiro-francês-americano, cujos dados contribuem ao monitoramento climático no Norte e Nordeste brasileiros.[175]
Vida marinha
O ecossistema marinho brasileiro é vasto e hidrológica e topograficamente complexo, abrangendo uma grande diversidade de hábitats e altos níveis de endemismo.[176][177] 31,8% da extensão do litoral pode ser classificada em baías e estuários, 27,6% em praias e costões, 18% em lagunas e banhados costeiros, 13,6% em manguezais e 9% em dunas e falésias.[178] Cerca de 3 000 km ou um terço do litoral tem recifes na plataforma continental: recifes de coral, de 0° 52' N a 19° S, e recifes rochosos de 20° a 28° S.[179] Em maiores profundidades, as encostas sedimentadas, cânions submarinos, corais formadores de recife ou solitários, emanações e pockmarks de metano, montes submarinos e guyots têm comunidades bênticas distintas.[180]
Uma revisão de literatura publicada em 2011 contabilizou 9 103 espécies marinhas no litoral brasileiro, das quais 8 878 são animais: 1 966 crustáceos, 1 833 moluscos, 1 294 vertebrados (peixes), 987 anelídeos, 535 cnidários, 400 poríferos, 308 invertebrados miscelâneos, 254 equinodermas, 178 vertebrados miscelâneos, 133 briozoários, 70 tunicados e 45 platelmintos. Nos outros reinos, foram identificadas duas bactérias, entre os vegetais, 488 rodófitas, 201 clorófitas e 14 angiospermas e entre os protistas, 49 dinoflagelados e 15 foraminíferos.[181] O total de espécies pode chegar a 13 mil.[182] Há registro de 66 espécies invasoras.[183]
Entretanto, se o número de espécies é elevado, cada uma tem biomassa relativamente pequena.[7] As duas correntes predominantes (do Brasil e do Norte do Brasil) são pobres em sais nutrientes na zona eufótica, onde ocorre a fotossíntese e a produção de biomassa na base da cadeia trófica,[159] e têm termoclina profundo, limitando o fluxo de nutrientes do fundo à superfície.[184] Maiores abundâncias de biomassa podem ser encontradas na Corrente das Malvinas, que tem concentração maior de sais nutrientes; nas áreas de ressurgência como Cabo Frio; nas imediações da costa, onde a pequena profundidade da água, a descarga fluvial, o vento e as marés enriquecem a água com a turbulência;[159] e nos trechos do Norte influenciados pela água doce rica em nutrientes do rio Amazonas.[168]
A base da produção primária nas águas oligotróficas é o picoplâncton. As áreas de ressurgência têm espécies de fitoplâncton de maiores dimensões e maiores populações de peixes pelágicos. A comunidade pelágica transfere matéria orgânica à comunidade bêntica, que tem dois grupos: os litorais norte, sudeste e sul, onde a plataforma continental é plana, com fundo de areia, lama e argila, e no leste e nordeste, onde ela é irregular e rochosa, formada por algas calcárias.[185] As aves marinhas, em diversidade relativamente pequena (cerca de 130 espécies), migram a pontos como o Atol das Rocas para se reproduzir. As aves do Hemisfério Norte vêm de setembro a maio, e do sul, de maio a agosto.[186]
Atividade humana
A dimensão humana da "Amazônia Azul" não tem a complexidade da "Amazônia Verde", pois sua população se limita a marinheiros e trabalhadores de plataformas petrolíferas.[187] Por outro lado, quando se considera a área costeira, 26,6% da população brasileira, ou cerca de 50 milhões de habitantes, viviam nos seus 450 mil km² no censo de 2010,[188] uma densidade demográfica até cinco vezes superior à média nacional.[189] Esta população é altamente concentrada em alguns centros urbanos, deixando outras regiões do litoral com baixa densidade de ocupação.[190] 13 das 71 regiões metropolitanas são litorâneas: Macapá, São Luís, Parnaíba, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju, Salvador, Vitória, Rio de Janeiro e Florianópolis.[191] O uso de muitos recursos do litoral é concomitante e concorrente,[192] sendo assim palco de conflitos socioambientais surgidos das contradições entre a conservação ambiental, o desenvolvimento econômico e os interesses públicos, privados, locais e globais.[193]
Interesses tão diversos quanto os ministérios da Justiça e Segurança Pública, Defesa, Relações Exteriores, Economia, Infraestrutura, Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Educação, Cidadania, Saúde, Minas e Energia, Ciência, Tecnologia e Inovação, Meio Ambiente, Turismo e Desenvolvimento Regional, além da Casa Civil da Presidência da República, são representados na Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM).[194] Esta comissão coordena os programas estratégicos do Estado brasileiro para o setor, como o Leplac, conforme delineado na Política Nacional para os Recursos do Mar (PNRM) e nos Planos Setoriais de Recursos do Mar (PSRM) editados a cada quadriênio. A CIRM é coordenada pelo comandante da Marinha, representado na comissão por um oficial que também chefia a secretaria (SECIRM), um órgão de apoio que mantém contato com ministérios federais, governos estaduais, a comunidade científica e entidades privadas.[195][196]
Pesquisa
O Estado brasileiro investe em diversos programas de pesquisa no Atlântico Sul para fundamentar as propostas de extensão da plataforma continental, assegurar a presença nacional nas ilhas oceânicas e compreender a biodiversidade e recursos naturais da área.[197] A área de Ciências do Mar brasileira teve sucesso nos levantamentos da geologia da plataforma continental e dos recursos vivos da ZEE, obras de engenharia e programas internacionais de pesquisa, mas o número de pesquisadores e a disponibilidade de equipamentos e meios flutuantes são insuficientes para o tamanho do campo de estudos.[198]
A ciência, tecnologia e inovação (CT&I) oceânica no país é financiada principalmente por órgãos públicos, com exceções notáveis de empresas como a Chevron, Equinor, Shell, Vale e Petrobras.[199] 65 instituições de ensino superior ofereciam 1 840 vagas anuais cursos em Ciências do Mar em 2022.[200] Tanto a Marinha quanto instituições civis operam navios oceanográficos.[201] Um instituto nacional do mar, comparável ao papel desempenhado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em outras áreas,[202] inexistia até 2022, quando foi criado o Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas (Inpo). Com uma dotação inicial de apenas 17 funcionários e R$ 10 milhões em orçamento anual, é uma organização pequena, concebida para reunir os dados de pesquisa e direcionar trabalhos estratégicos.[203]
Conforme a Comissão Oceanográfica Intergovernamental, de 370 mil artigos em ciência oceânica publicados no mundo de 2010 a 2014, autores brasileiros participaram de 13 mil. Em quatro categorias, as "funções e processos de ecossistemas marinhos", "saúde do oceano", "crescimento azul" e "saúde e bem-estar humano", a porcentagem de artigos no total de produções científicas brasileiras está acima da média internacional, e assim o Brasil é considerado especializado nessas áreas. A categoria "dados marinhos e observação oceânica" está na média internacional e o "oceano e clima", "tecnologia oceânica" e "crosta oceânica e riscos geológicos marinhos" estão abaixo.[202]
Economia
As águas jurisdicionais participam diretamente do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em seis setores: os serviços (especialmente o turismo), energia, manufaturas, defesa, pesca e transporte.[204] O mar também abriga infraestruturas críticas de comunicação, os cabos submarinos de dados digitais, através dos quais passam 98% dos dados em circulação na Internet brasileira.[205][117] Mas sua participação econômica indireta é muito maior e pode ser difícil de mensurar: o setor imobiliário nas cidades costeiras, por exemplo, é valorizado por sua proximidade. Especialistas consideram que o potencial do setor ainda não é plenamente aproveitado, especialmente no "PIB azul" ou economia azul,[204] uma nova fronteira econômica com aspectos ambientais e sociais.[206]
Entretanto, inexiste um "setor mar" nos principais indicadores econômicos como o PIB, de forma que muitas atividades são contabilizadas em outros setores, como o agropecuário.[207] Não há uma metodologia oficial e sistematizada para o cálculo.[10] O primeiro estudo científico para quantificar o setor[208] produziu estimativas para o ano de 2015: a economia do mar teria gerado R$ 1,1 trilhões, ou 18,93% do PIB nacional, em 2015, ocupando 19 829 439 trabalhadores. Os setores "adjacentes ao mar"[g] contribuíam com 16,26% do PIB nacional e 17 745 279 empregos, predominantemente no setor terciário. Já as atividades diretamente desenvolvidas no mar, ou cujos produtos são empregados no mar, representavam 2,67% do PIB e 2 084 160 empregos.[h]
Nessa contagem a economia do mar brasileira é dominada pelo setor de serviços, relacionado ao turismo, e não a setores tradicionalmente marinhos como o petróleo, gás, pesca e aquicultura.[212] O tamanho do setor, devidamente contabilizado, se compara ao do agronegócio.[207] Comparações com as estimativas de outros países podem ser equivocadas, pois as metodologias são diferentes,[213] mas o valor encontrado para a economia diretamente ligada ao mar é condizente com o calculado para os Estados Unidos em 2013, que foi 2,2% do PIB nacional.[214] Em 2020 a CIRM determinou a criação do Grupo Técnico "PIB do Mar" para definir uma metodologia de mensuração e eventualmente publicar números oficiais através do IBGE.[208]
Comércio
As cidades litorâneas têm no mar uma via de comunicação natural entre si e com os outros continentes, a custos econômicos para grandes volumes de carga em longas distâncias.[215] Desta forma, os portos brasileiros movimentaram 1,151 bilhão de toneladas de carga em 2020,[216] empregando 43 205 trabalhadores registrados em 2021.[217] A maior movimentação ocorreu em Santos, Paranaguá e Itaguaí,[216] mas os portos do Norte e Nordeste estão em ascensão como rotas de escoamento da produção agrícola do Centro-Oeste.[218]
O transporte marítimo de longo curso é a principal modalidade do comércio internacional brasileiro, representando, em 2021, 98,6% da massa e 88,9% do valor das exportações e 95% da massa e 74% do valor das importações.[216] Em contraste, o comércio interno tinha participação de apenas 15% do modal aquaviário (10% na cabotagem) e 5% nas hidrovias em 2015, um grande declínio desde 1950, quando ele representava 32,4% da demanda doméstica de transporte.[219]
Historicamente a conexão entre os polos do litoral brasileiro era quase exclusivamente feita pela cabotagem, mas desde os anos 1950 as políticas de desenvolvimento priorizaram os modais terrestres e a indústria automobilística. O principal modal de transporte no presente é o rodoviário.[219] A cabotagem tem potencial não aproveitado,[220] e representantes do setor defendem sua previsibilidade, multimodalidade e menores riscos de avarias, roubos e acidentes ambientais.[221] Entretanto, empresas interessadas em transportar seus produtos pela cabotagem têm de enfrentar dificuldades logísticas na integração modal, baixa frequência das linhas e altos custos, que são resultado do alto índice de ocupação dos navios.[222]
A Marinha Mercante Brasileira empregava 26 631 marinheiros e 887 navios sob a bandeira nacional em 2023, representando uma tonelagem de porte bruto de 5,522 milhões.[223] Ela é representativa no mercado nacional da cabotagem, respondendo por 92% do transporte em contêineres, 59,1% em carga geral, 24,3% em granel sólido e 4,1% em granel líquido em 2021.[224] Por outro lado, a navegação de longo curso tem participação irrisória da bandeira brasileira, com algumas exceções, como o transporte a países do Mercosul ou a exportação de petróleo.[225] Em 2008, empresas brasileiras contribuíam com cerca de 10% do mercado de fretes internacionais, em sua maioria usando navios estrangeiros fretados.[226] Em 2005, apenas 4% dos fretes gerados pelo comércio exterior eram pagos a empresas brasileiras.[227]
Construção naval
A indústria naval brasileira é historicamente concentrada no Rio de Janeiro. Em 2010 havia 26 estaleiros em operação, dos quais 15 eram fluminenses. 152 projetos estavam em construção em 2016, principalmente barcaças e empurradores, com 82 unidades, seguidos de petroleiros, navios de apoio marítimo, rebocadores portuários, plataformas de produção, submarinos e gaseiros.[228] A indústria é intensiva em mão-de-obra e cada emprego direto pode gerar outros cinco indiretos.[229] Os estaleiros tinham 21 mil empregados em 2019, uma grande queda dos 82 mil em 2014, mas estavam em recuperação.[230]
Em 1974, no auge do setor, a participação de navios de bandeira nacional no transporte de longo curso chegou a 17,6%. A produção declinou a partir dos anos 1980 e só retomou o crescimento no século XXI, impulsionada pela demanda da indústria petrolífera.[231] As embarcações de bandeira nacional não conseguiram competir após a desregulação e retirada das políticas de reserva de mercado, e a construção naval no Brasil permaneceu mais onerosa do que em outros países com custos maiores de mão-de-obra e energia.[232][233]
Turismo
O setor de turismo náutico contribuiu com R$ 12,6 bilhões do PIB brasileiro de 2023, contando somente os passeios e esportes com lanchas, veleiros, iates, jets e outros barcos do gênero. O setor de barcos gerou 150 mil empregos diretos e indiretos. O turismo de cruzeiros acrescentou outros R$ 5 bilhões na temporada 2023/2024, com 80 mil empregos gerados.[234] Entendido mais amplamente, o turismo do litoral inclui, além do turismo náutico, os turismos de praia, balneário, mergulho e outros, e todo um conjunto de infraestruturas de hospedagem, alimentação, recreação, artigos esportivos e marinas.[216] Os atrativos brasileiros nesse setor são a vasta extensão do litoral e águas internas, seu clima e suas paisagens, com praias tropicais e subtropicais de areia branca e cadeias montanhosas na parte meridional.[235] Há um déficit de vagas nos navios, indicando um potencial não aproveitado, mas faltam estruturas de atracação.[234]
Combustíveis
As reservas de petróleo na plataforma continental, especialmente na camada pré-sal, são cruciais para o interesse brasileiro na área.[236] O mar é a principal fonte nacional de petróleo e gás natural[237] — 95,1% da produção em barris equivalentes de petróleo (boe) em 2023.[238] O setor correspondia a 15% do PIB industrial brasileiro em 2022, dividido em 7% na extração e 8% do mercado de derivados,[239] e é a atividade mais intensiva em tecnologia na economia marinha brasileira.[204]
A produção média em 2023 foi de 3,402 milhões de barris/dia de petróleo e 150 milhões de metros cúbicos/dia de gás natural,[240] com 15,894 bilhões de barris de reservas provadas de petróleo e 517 bilhões de metros cúbicos de reservas provadas de gás natural.[241] Esta reserva de petróleo era a 14.ª maior do mundo em 2018.[6] O Brasil é em teoria autossuficiente em petróleo, produzindo um volume superior ao consumo, mas ainda importa petróleo bruto e derivados como gasolina e óleo diesel.[5]
O petróleo marítimo brasileiro é produto da evolução geológica do Atlântico Sul, que favoreceu seu acúmulo em bacias sedimentares na margem continental.[242] No início da separação entre a América do Sul e a África, sedimentos ricos em matéria orgânica foram depositados em lagos de rifte. O clima quente e de intensa evaporação propiciou a precipitação de sal marinho, sob a qual formou-se uma camada pré-sal de petróleo e gás natural.[243][244] Grande parte das reservas do pré-sal está no limite das 200 milhas náuticas.[245] A bacia mais importante é a de Santos, onde foram produzidos 74,08% do petróleo e 75,34% do gás natural em 2023. Em segundo lugar para ambos os produtos está a bacia de Campos.[246] O primeiro poço marítimo foi perfurado em 1968, e as grandes reservas do pré-sal foram descobertas nos anos 2000.[247] Desde então a produção cresce continuamente,[248] superando a produção no pós-sal em 2017.[249]
Depósitos de carvão mineral foram identificados perto da praia de Santa Terezinha, no Rio Grande do Sul, a 700–800 m de profundidade.[250] Hidratos de gás — moléculas de metano presas em cristais de gelo nos sedimentos — foram encontrados nos cones do Amazonas e do Rio Grande, mas a informação ainda é incompleta para o restante do país. Eles são potencialmente uma alternativa energética ao petróleo e gás natural, mas sua extração, armazenamento e emprego ainda são tecnologicamente difíceis.[251][252]
Minerais
Para além do petróleo e gás, o leito marinho e subsolo do Atlântico Sul são uma nova fronteira de mineração marinha. O conhecimento de seu potencial mineral ainda é incompleto, mas o interesse é crescente à medida que se esgotam reservas terrestres e avança a tecnologia de exploração marítima.[253] A plataforma continental brasileira tem jazidas de granulados, minerais pesados, fosforitas, evaporitos e enxofre.[254][255] Em leitos marinhos mais profundos e distantes da costa já se prospectam crostas cobaltíferas, sulfetos polimetálicos e nódulos polimetálicos. Eles estão em sua maioria na "Área" — o leito marinho sob jurisdição internacional — com as notáveis exceções das áreas ao redor de São Pedro e São Paulo, Trindade e Martim Vaz e a elevação do Rio Grande.[256] A tecnologia de exploração nessas profundidades, na maioria dos casos, ainda não está disponível.[257]
Os granulados ocorrem em duas categorias: os siliciclásticos, compostos por areias e cascalhos, e os bioclásticos, ricos em carbonato de cálcio e compostos de areias, cascalhos, rodolitos e concreções carbonáticas. Os siliciclásticos são extraídos em profundidades de até 30 m, com um potencial estimado em bilhões de metros cúbicos ao longo do litoral. Eles podem ser usados nas indústrias de cimento, vidros e siderurgia, na construção civil e na reconstrução de litorais erodidos. Os bioclásticos ocorrem do rio Pará até Cabo Frio e podem ser usados na agricultura, filtros de água, cosméticos, suplementos alimentares, implantes ósseos, construção civil, siderurgia e tratamento de água potável.[258]
As fosforitas estão associadas a áreas de ressurgência, e portanto, não são comuns na margem continental brasileira. Ainda assim, elas já foram encontradas no platô do Ceará, a 400 m de profundidade, no platô de Pernambuco, a 700–1 250 m, no terraço de Florianópolis a 200–600 m, no terraço do Rio Grande, a 200–800 m, e na elevação do Rio Grande, a 700–1 500 m. Eles têm uso como fertilizantes agrícolas e fontes de fósforo na indústria, e algumas jazidas têm teores significativos de ferro, titânio e metais de terras raras.[259][260]
Pláceres de minerais pesados ocorrem nas porções emersa e imersa da faixa litorânea, do Pará ao Rio Grande do Sul. O rutilo e a ilmenita, ricos em titânio, a monazita, rica em cério e tório, e a zirconita têm ou tiveram aproveitamento em escala industrial. Na porção imersa, a extração a profundidades de 40 a 100 m é viável mas ainda não aproveitada. As desembocaduras dos rios Jequitinhonha e Pardo-Salobro, na Bahia, pode conter jazidas de diamante.[261]
Evaporitos de sais minerais — sais anidros, gipsita, halita, potássio e sais de manganês — ocorrem da bacia de Sergipe-Alagoas até a bacia de Santos, sobre a camada do pré-sal. A bacia de Sergipe-Alagoas era em 2005 a única produtora de cloreto de potássio no Brasil, com reservas estimadas em 13,5 milhões de toneladas. As jazidas de Abrolhos a Mucuri, na Bahia, e Barra Nova, no Espírito Santo, são promissoras por sua pequena profundidade e distância da costa. Em Abrolhos também já se identificaram domos salinos revestidos de sulfeto a profundidades de 20 a 30 m.[262][263]
Nódulos polimetálicos ricos em ferro e manganês já foram identificados no platô de Pernambuco, em profundidades de 1 750 a 2 200 m, no canal de Vema e na cadeia Vitória-Trindade. Crostas de manganês e ferro com elevados teores de cobalto (crostas cobaltíferas) ocorrem no platô de Pernambuco, a profundidades de mil a três mil metros, e na elevação do Rio Grande. Depósitos hidrotermais de sulfetos polimetálicos e sedimentos metalíferos associados provavelmente existem nas redondezas de São Pedro e São Paulo. O Serviço Geológico do Brasil assinou em 2015 um contrato com a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) para conduzir levantamentos na elevação do Rio Grande, até então considerada área sob jurisdição internacional.[264][265] Depois da reivindicação da área como parte da plataforma continental estendida, o contrato foi encerrado em 2021.[266]
Energia renovável
O litoral brasileiro tem potenciais inexplorados de geração de energia renovável nas modalidades maremotriz, ondomotriz e eólica offshore. O potencial maremotriz e ondomotriz foi estimado em 114 GW em 2022. Os sítios viáveis para a exploração da energia das marés estão na região Norte e no Maranhão, enquanto a energia das ondas é aproveitável nos demais estados.[267] O potencial eólico offshore foi estimado em 480 GW em fundação fixa (a profundidades inferiores a 70 m) e 748 GW em fundação flutuante (a até 1 000 m) em 2024. Grandes centros urbanos como Fortaleza, Rio de Janeiro e Porto Alegre estão próximos às principais regiões eólicas, com o maior potencial na região Sul. Entretanto, os custos iniciais seriam elevados e investimentos significativos na rede de transmissão, estrutura portuária e capacidade manufatureira seriam necessários para alcançar uma escala significativa de produção.[268] Para efeito de comparação, a rede elétrica brasileira alcançou 200 GW de potência centralizada em 2024, tendo como principal fonte a energia hidrelétrica.[269]
Pesca
O Brasil historicamente contribui com pouco mais de 0,5% da produção mundial de pesca marítima.[270] A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) registrou uma produção de 758 mil toneladas pescadas no Brasil em 2022, de um total mundial de 91,029 milhões. Mais de 30% das capturas ocorrem nos rios e lagos. O Brasil também produziu 738 mil toneladas na aquicultura, de um total mundial de 94,413 milhões.[271][272] A pesca industrial de foco exportador desenvolveu-se no país a partir dos anos 1960, impulsionada por uma crença equivocada na infinita disponibilidade dos estoques pesqueiros.[273] A grande extensão das águas jurisdicionais, por si só, não torna o Brasil uma potência pesqueira, pois as condições oceanográficas, já referidas, não produzem grandes biomassas de pescado.[7]
Os estoques pesqueiros foram avaliados pelo Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva do Brasil (ReviZEE), uma iniciativa multidisciplinar e descentralizada executada de 1996 a 2005.[274][275] Quando de sua conclusão, 69% da pesca marinha consistia em oito famílias: pescadas e corvinas (Sciaenidae), sardinhas (Clupeidae), atuns e afins (Scombridae), camarões da família Penaeidae, bagres da família Ariidae, tainhas da família Mugilidae, arabaianas, xaréus, xareletes, garajubas e outros peixes da família Carangidae e pargos, gauiúbas, ariacós e outros peixes da família Lutjanidae.[276] A maioria das espécies-alvo da pesca costeira e continental estavam sobre-explotadas, não havendo perspectiva de aumento da produção. Havia mais potencial na pesca oceânica, mas mesmo neste caso, os estoques já estavam próximos aos limites do uso sustentável.[277] Mesmo nas águas profundas inacessíveis às frotas tradicionais, os estoques têm potencial limitado.[257] O maior potencial de crescimento a longo prazo está na aquicultura,[271] inclusive na maricultura no litoral recortado por enseadas e baías.[278]
A pesca e aquicultura contribuem com pouco mais de 0,5% do PIB nacional, embora tenham grande relevância a nível local, gerando 3,5 milhões de empregos diretos ou indiretos. A maioria trabalha na pesca artesanal; de uma frota estimada em 21 732 embarcações em 2019, a grande maioria tinha menos de 12 metros de comprimento e só um terço era motorizada. A pesca industrial concentra-se nas regiões Sul e Sudeste.[271] O pescado não é central na dieta brasileira: o consumo anual per capita era de 9,5 kg em 2020, abaixo da média global de 20 kg.[271] Ainda assim, a produção é insuficiente para atender a demanda e em 2022 o Brasil estava entre os 11 maiores importadores de pescado do mundo.[279]
Biotecnologia
Além da pesca, outra categoria de recursos vivos é a biotecnologia, aproveitando moléculas ou genes de microrganismos marinhos. No Atlântico Sul, as pesquisas concentram-se em enzimas hidrolíticas e biorremediação. O Estado brasileiro promove um programa de prospecção, o Biomar, desde 2005. O impacto ambiental desta atividade é irrisório, mas a industrialização dos produtos biotecnológicos marinhos ainda estava distante em 2020.[280]
Política ambiental
Os ecossistemas marinhos brasileiros são pressionados pela pesca industrial, navegação, poluição portuária e terrestre, desenvolvimento costeiro, mineração, extração de petróleo e gás, espécies invasivas e mudança do clima.[281] Resíduos industriais, de mineração, agrícolas, farmacológicos, sanitários e outros alcançam o mar a partir do continente. Um caso particularmente grave foi o rompimento de barragem em Mariana, no qual rejeitos de mineração carregados de ferro, alumínio, manganês, arsênio, mercúrio e outros metais atravessaram mais de 600 km no rio Doce até desembocar no mar. Os acidentes com os navios petroleiros são o tipo mais visível de poluição,[282] do qual o maior caso registrado no país foi o vazamento de óleo no Nordeste em 2019.[283] A acidificação oceânica global pode impedir a calcificação das algas do Espírito Santo e do banco de Abrolhos e dissolver as paredes calcárias já formadas, liberando à atmosfera seu gás carbônico acumulado.[182] No Atlântico Sul, a elevação da temperatura de superfície do mar tenderá a enfraquecer a Corrente das Malvinas, deslocando sua confluência com a Corrente do Brasil mais para o sul.[284]
Em 2021 havia 190 unidades de conservação em áreas marinhas brasileiras, cobrindo 27,6% do mar territorial e 26,4% da Zona Econômica Exclusiva, para um total de 26,5% das duas áreas. A área costeira tinha outras 549 unidades.[8] Até a criação de duas áreas de proteção ambiental nos arquipélagos de São Pedro e São Paulo e de Trindade e Martim Vaz, em 2020, a cobertura de unidades de conservação na ZEE não passava de 1,5%.[285] A medida permitiu ao Brasil anunciar seu cumprimento da Meta 11 de Aichi, de proteger ao menos 10% das áreas costeiras e marinhas. Este compromisso foi firmado pelo país, como signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica, em 2010.[286] Ainda assim, a cobertura de áreas de proteção integral (no take) ficou em apenas 2,5%. O Ministério do Meio Ambiente tinha como meta a ampliação desse tipo de cobertura para além de 10% nos 15 anos seguintes.[285]
Áreas prioritárias sem proteção incluíam os recifes no limite da plataforma continental amazônica, as águas rasas da cadeia Norte-Brasileira, o sul do banco de Abrolhos e, na região Sul, os bancos de coral de águas profundas, leitos de rodolitos e comunidades bênticas de fundos não-consolidados. As áreas de prioridade máxima, correspondendo a 83 mil km², estão no Sudeste e sul da Bahia, onde há a maior sobreposição de fatores de risco e biodiversidade. Esta conclusão, publicada na revista Diversity and Distributions, foi baseada na distribuição de 143 espécies animais com estados de conservação em perígo crítico, em perigo ou vulneráveis. Os autores consideram que as áreas existentes são escolhidas por critérios mais oportunistas e políticos do que biológicos.[287][285] Os arquipélagos de São Pedro e São Paulo e Trindade e Martim Vaz são áreas remotas e sua conservação fere poucos interesses, ao contrário do litoral.[9]
Segurança
Os limites da "Amazônia Azul" são linhas imaginárias sobre o mar e só existem fisicamente enquanto patrulhados por navios brasileiros.[126] Ela é uma região de fronteira e, como tal, precisa ser monitorada e eventualmente negada ao acesso de atores externos. Este encargo cabe às Forças Armadas, especialmente a Marinha,[288] na sua natureza "dual", ao mesmo tempo para operações de guerra e de policiamento. Não há guarda costeira independente.[289] Em reconhecimento formal desse papel, o Comando da Marinha recebe parte dos royalties da extração de petróleo na plataforma continental. A Força Aérea Brasileira (FAB) reforça este trabalho da Marinha com suas aeronaves de aviação de patrulha.[290] O Brasil tem ainda responsabilidades de busca e resgate sobre o mar, dos paralelos 07° N a 35° S até o meridiano 10° W.[291]
O lado de "guarda costeira" da Marinha é representado por seus Distritos Navais, aos quais são alocados um número considerável de navios-patrulha.[292] O comandante da Marinha é a Autoridade Marítima Brasileira e, como tal, é responsável por implementar e fiscalizar as leis e regulamentos referentes ao mar e águas interiores,[293] entendendo-se no direito de apresar embarcações estrangeiras que realizem atividades não autorizadas em quaisquer das zonas marítimas de AJB e encaminhá-las às autoridades competentes.[294] Suas atribuições subsidiárias também incluem "orientar e controlar a Marinha Mercante e suas atividades correlatas, no que interessa à defesa nacional".[295] A instituição forma, com exclusividade, os oficiais da Marinha Mercante,[296] que lhe serve de reserva não remunerada e pode ser convocada em caso de guerra.[297]
No seu lado bélico, a Marinha é encarregada de dissuadir potências estrangeiras[298] e, no caso de guerra, negar-lhes o uso do mar, controlar áreas marítimas e projetar poder sobre terra. Suas prioridades são as faixas de Santos a Vitória, a foz do Amazonas, os arquipélagos, ilhas oceânicas, plataformas petrolíferas e instalações navais e portuárias.[299] Para além das águas jurisdicionais brasileiras, todo um espaço marítimo do paralelo 16° N até as margens da Antártica é designado "entorno estratégico" do Brasil.[300]
Na defesa de seus interesses no Atlântico Sul, o Brasil empreendeu um duplo esforço de reequipamento militar e aproximação dos países da região.[301][302] No segundo caso, a Marinha realiza exercícios navais conjuntos, assessoria militar e transferências de armas a países africanos, e o corpo diplomático tentou reavivar a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul.[303] No primeiro caso, a "defesa da Amazônia Azul" é o lema de novos investimentos em navios.[304] Nos anos 2000, a descoberta de novas jazidas de petróleo e gás natural, o desenvolvimento econômico e a publicação de novos documentos de defesa, como a Estratégia de Defesa Nacional de 2008,[302] motivaram o ambicioso Plano de Articulação e Equipamento da Marinha (PAEMB), que prometia uma esquadra digna de uma potência internacional, incluindo dois porta-aviões de 50 mil toneladas e seis submarinos nucleares, até os anos 2030.[13] Esta força seria acompanhada do Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz), uma rede de monitoramento das águas jurisdicionais através de satélites, radares e equipamentos de sensoriamento submarino.[305]
O PAEMB estava muito aquém das possibilidades orçamentárias e foi abandonado no seu formato original.[13] Em 2016 o SisGAAz deixou de ter data prevista de conclusão.[306] De 2000 a 2022 a Esquadra desincorporou dois porta-aviões, um navio-tanque, três navios anfíbios, três submarinos, três navios varredores e onze navios de escolta. No mesmo período foram obtidos um porta-helicópteros, um navio anfíbio, uma escolta e dois submarinos. Quatro escoltas e três submarinos estavam em construção, mas se planejava desincoporar mais 40% da frota até 2028.[12] Em 2023 a maior parte da frota de superfície beirava os 40 anos de idade e enfrentava a obsolescência em bloco. A Seaforth World Naval Review avaliou que a Marinha conseguiu transmitir o conceito da "Amazônia Azul" à população, mas "a não ser que a vontade política possa ser conseguida para aumentar seus recursos, a Marinha do Brasil ficará com uma capacidade muito abaixo das suas responsabilidades".[307] A revista Tecnologia & Defesa afirmou haver uma "falta de prioridade da maioria dos políticos para a agenda de Defesa" e uma "incipiente mentalidade marítima da população em geral".[12]
Percepções de ameaça
Um inimigo definido foi a lacuna na propaganda da Amazônia Azul, impedindo o pleno convencimento do público, na opinião do jornalista Roberto Lopes. Ameaças convencionais pareciam distantes no pós-Guerra Fria.[69] O Atlântico Sul é "uma zona tradicionalmente de paz", na definição do ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores, Celso Amorim.[308] O Brasil tem relações cordiais com seus vizinhos terrestres.[309] Sob a hegemonia dos Estados Unidos, a probabilidade de uma guerra é baixa e o Brasil se dá ao luxo de manter uma baixa prontidão militar.[310][311]
O governo brasileiro expressa preocupação com as "novas ameaças" como a pirataria, o terrorismo, o tráfico de drogas, armas e humano, os crimes ambientais, a pesca ilegal, a biopirataria e outros ilícitos transnacionais. Alguns já estão presentes na costa ocidental africana e podem eventualmente chegar às linhas de comunicação marítimas usadas pelo Brasil.[312][313][314] A Marinha frequentemente encontra navios realizando despejos ilícitos e outras infrações ambientais.[315] Incidentes com barcos pesqueiros ilegais são também frequentes nas águas internacionais próximas ao Brasil. Na Argentina, isso já têm levado à abordagem, apreensão, perseguição e mesmo afundamento desses navios.[316] "Navios fantasma", que deliberadamente ocultam sua posição e movimentos, podem ser usados para os crimes já mencionados, o levantamento geológico e pesquisas biológicas não autorizados e a espionagem e roubo de dados dos cabos submarinos.[317]
O pensamento militar brasileiro não descarta o retorno das ameaças tradicionais — Estados mais poderosos que o Brasil, que, impelidos pelo esgotamento de recursos naturais, poderiam contestar a soberania e jurisdição brasileiras.[314] O petróleo e gás natural da plataforma continental, em particular, são objetos de preocupação de segurança em setores nacionalistas e militares da sociedade.[236] Na END, o Brasil explicitou seu repúdio à presença militar extrarregional no Atlântico Sul e a projeção de conflitos e rivalidades alheios à sua realidade. Esta presença já existe com os Estados Unidos (a Quarta Frota), o Reino Unido (as ilhas de Ascensão, Santa Helena, Tristão da Cunha e Falklands/Malvinas) e a França (a Guiana Francesa).[303] Essas três potências são estudadas como agressores potenciais por estrategistas brasileiros e argentinos.[318] O presidente Luís Inácio Lula da Silva relacionou a reativação da Quarta Frota em 2008 às descobertas do pré-sal brasileiro.[319] Além das três potências ocidentais do Atlântico Norte, a influência naval da China é crescente em países africanos.[12]
Numa guerra hipotética, o cinturão de ilhas pertencentes ao Reino Unido poderia servir de plataforma para um ataque aos campos de petróleo ou ao litoral brasileiro.[12] A extensão do litoral facilita a projeção de poder ao Atlântico Sul, mas também expõe o país à projeção de poder de um inimigo. As carências da Esquadra e a dependência energética e comercial no mar deixariam o Brasil vulnerável.[320] A ZOPACAS não é uma aliança militar defensiva e, mesmo se fosse, seu poder naval acumulado não se compararia às potências extrarregionais.[12]
Outra forma de presença extrarregional é com navios de pesquisa. Em abril de 2023 o navio de pesquisa alemão RV Maria S. Merian operou sem autorização sobre a elevação do Rio Grande. A fragata Independência (F-44) foi acionada e o navio de pesquisa deixou as AJB.[12][321] Em fevereiro de 2020 o navio de inteligência da Marinha Russa Yantar, suspeito de espionagem de cabos submarinos, adentrou a ZEE brasileira. O Yantar sumiu do monitoramento e só foi encontrado novamente seis dias depois, por um helicóptero da Marinha e um avião da FAB, a 80 km do Rio de Janeiro, dando respostas evasivas sobre o seu trabalho. Ele foi conduzido ao porto do Rio de Janeiro,[322][323] de onde deixou as águas brasileiras sob o acompanhamento da Marinha.[324]
Ver também
Notas e referências
Notas
- ↑ "Quando se fala em Amazônia Azul pode-se então concluir que este conceito está intimamente ligado ao conceito de “Águas Jurisdicionais Brasileiras”, visto que ambos referem-se exatamente à mesma região, compreendendo a faixa de 200 milhas da costa, incluídas a extensão da Plataforma Continental reconhecida pela CNUDM e as águas sobrejacentes à esta extensão".[1]
- ↑ O Livro Branco da Defesa Nacional de 2012 equivocadamente afirma que os Estados costeiros podem pleitear uma extensão da ZEE até as 350 milhas.[25]
- ↑ "Não é correto dizer que a CLPC aprova os limites submetidos pelo Estado. A CLPC é um órgão estabelecido pela Unclos [CNUDM] de modo a conferir à submissão de delimitação da plataforma continental do Estado costeiro depositada, junto ao secretário-geral das Nações Unidas, o seu aval técnico-científico no que diz respeito à aplicação dos parâmetros e critérios contidos na Unclos. Assim, é importante enfatizar que a manifestação da CLPC não constitui aprovação ou desaprovação da ONU. Essa comissão não possui qualquer vinculação com a ONU, senão pelo apoio administrativo, conforme previsto na própria Unclos, provido pelo secretário-geral da ONU na qualidade de depositário desse instrumento jurídico internacional".[29]
- ↑ A versão de 2012 do Livro Branco da Defesa Nacional se contradiz ao definir as áreas marítimas brasileiras até um limite de 200 milhas náuticas, excluindo a plataforma continental estendida, ao mesmo tempo que cita uma área em quilômetros quadrados equivalente à ZEE e mais a plataforma.[42] O IX Plano Setorial para os Recursos do Mar (IX PSRM), para 2016–2019, contradiz a definição das NORMAM ao excluir reivindicações de jurisdição sobre a plataforma continental estendida. Outros documentos não repetiram a definição, e ela não se sobrepõe à autoridade do Comando da Marinha.[43]
- ↑ O almirante de esquadra Júlio Soares de Moura Neto, comandante da Marinha de 2007 a 2015, mencionou num artigo "as nossas águas jurisdicionais, que costumamos chamar de Amazônia Azul".
- ↑ Números maiores são citados, de até 9 000 km ou mesmo 10 800 km, contando baías e golfos.[79]. Vide paradoxo do litoral.
- ↑ Que não necessariamente usam insumos ou produzem para o ambiente marinho, mas são influenciados por políticas marinhas.[209]
- ↑ 1,02% e 1 320 004 nos serviços, 0,65% e 314 593 nas manufaturas, 0,38% e 179 814 na defesa, 0,28% e 48 275 na energia, 0,18% e 130 408 nos recursos vivos e 0,16% e 91 066 no transporte.[210] As manufaturas, recursos vivos e transporte são os setores nos quais a expansão da demanda têm o maior efeito estimado no restante da economia.[211]
Citações
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